"Abril" celebra vitória do indivíduo

Filme de Walter Salles discute a tensão entre a liberdade e o determinismo social, além de representar o deslocamento do coletivo para o pessoal

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Por Agencia Estado
Atualização:

Walter Salles retoma o sertão como ambiente narrativo ao adaptar o romance do albanês Ismail Kadaré Abril Despedaçado. Um livro forte, inquietante, cujo tema é a tradição de vinganças de sangue na Albânia, codificada por uma legislação rígida, o Kanun, que especifica com minúcias quem deve ser morto e quando para reparar alguma ofensa feita ao clã. Na história, um rapaz vinga a morte de seu irmão, matando um membro da família inimiga. Ganha trégua de um mês, após a qual a sua vida não valerá um níquel. Será sua vez de oferecer o sangue para que a contabilidade da vendeta seja reequilibrada. Nesse meio-tempo, ele conhece uma moça e a possibilidade de romance se insinua. Na versão de Salles, a família nuclear é formada pelo pai (José Dumont), a mãe (Rita Assemany), e os filhos Tonho (Rodrigo Santoro) e Pacu (Ravi Ramos Lacerda). Em meio a uma terra árida e difícil, a família trabalha em torno da bolandeira, a antiga máquina de tração animal para espremer a cana-de-açúcar e fazer melado e rapadura. Tonho precisa vingar a morte do irmão mais velho, cuja camisa ensangüentada fica exposta no varal até que a mancha se torne amarela e assinale a chegada do tempo de vingança. O filme inteiro é ritmado pela noção de tempo. A começar pela imagem sinistra da bolandeira, que escraviza os homens e, vista de certo ângulo, parece um relógio cruel. Suas engrenagens metaforizam uma ordem acima dos desejos individuais - no caso específico, o código de honra determinando vinganças sucessivas. Mas não apenas. Se fala do ponto de vista de uma região - o Nordeste brasileiro de 1910 -, Abril Despedaçado se universaliza ao abordar o tema mais geral da luta do indivíduo contra um sistema que lhe dá um estatuto, mas exige em troca sua liberdade e vida. É por isso que, num diálogo entre a mãe e o pai, este diz que já perderam tudo, no sentido material, e se Tonho, que havia desaparecido, não voltasse para casa, teriam perdido também a honra. Tonho matara o rapaz do clã rival. Usufruíra sua trégua e agora deveria colocar seu sangue à disposição do inimigo. É a lei. O centro duro do filme discute esse dilema: submeter-se a uma tradição ou liberar-se? Decisão difícil, pois a tradição é pesada, mas confere estabilidade ao indivíduo, faz com que se sinta parte de um mundo coerente porque codificado, àspero porém com valores estabelecidos e no qual se sabe como agir diante de cada situação. A alternativa é a liberdade, com seus encantos e também com suas incertezas. O filme é montado em torno desse dilema do personagem. De um lado, a lei do pai, inflexível, imutável, como o eterno girar da bolandeira. Em uma cena significativa, os bois que passam o dia atados à roda são vistos rodando sozinhos ao lado da máquina, sem que ninguém os obrigue, simplesmente pela força da rotina. Tonho olha pensativo e, em silêncio, por metonímia, associa o seu destino ao do gado, sempre subjugado, com a canga sobre os ombros, no mesmo caminho, por hábito, porque não conhece opções. Mas um homem é outra coisa. Tonho tem um irmão menor, Pacu, que sonha com histórias do mar e se abre para outras possibilidades de vida. É por levar o irmão menor ao circo que Tonho irá conhecer os brincantes, Clara (Flávia Marco Antonio) e Salustiano (Luiz Carlos Vasconcellos), um casal errante, à maneira de José Wilker e Betty Faria na Caravana Rolidei de Bye Bye Brasil. Mas também parecido com os saltimbancos de Bergman em O Sétimo Selo. No filme de Cacá Diegues, o casal entrava pelo interior do País. E em meio a um ranço autoritário e tradicionalista representava um traço de libertação, anárquico, desenraizado, com potencial de deslocamento e mudança - pois são pessoas que viajam e a viagem significa mudança. No de Bergman, a família de saltimbancos é a única poupada da morte. Em torno dela, tudo é pecado, culpa e condenação. Mas a família de artistas constitui um espaço de ingenuidade mais livre do determinismo. Eles são os únicos que se salvam nessa alegoria medieval, feita para expressar as inquietações de quem acabara de vivenciar seis anos de guerra mundial e ingressava na era da corrida nuclear. Os brincantes de Abril Despedaçado são assim esse espaço lúdico, do crescimento pessoal e do amor, que será oferecido a Tonho em troca da rigidez da tradição. É curioso também observar como este filme recupera, sob nova ótica, alguns elementos típicos do Cinema Novo, de Deus e o Diabo na Terra do Sol em especial. Está lá a tensão entre contrários - o solo seco do sertão contra a promessa líquida do litoral. Dumont é o passado; Pacu, o garoto, é aquele que olha para o futuro (o mar). Tonho se dilacera entre um e outro. Com o espaço lúdico aberto pelos brincantes e o sacrifício do irmão, poderá tomar um caminho alternativo na encruzilhada (outra metáfora constante no filme). Esse caminho o leva do sertão ao mar, como levara antes o retirante de Vida e Morte Severina, de João Cabral de Melo Neto, e o vaqueiro Manuel de Deus e o Diabo, de Glauber Rocha. Ambos seguem as palavras do Conselheiro, que já ecoavam a antiga oposição entre o interior e o litoral. O mar inquieto e dissonante de Glauber indicava o tempo de guerra que viria a seguir, superadas as etapas do misticismo e da violência sem rumo. O mar mais poético de Abril Despedaçado fala mais da vitória do indivíduo contra as amarras que o cerceiam e ameaçam destruí-lo. Entre um filme e outro, quatro décadas de história brasileira produziram esse deslocamento do coletivo ao individual.

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