A solidão a dois na visão poética de Antonioni

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Por Agencia Estado
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Vizione del silenzio, visões do silêncio. É assim que Caetano Veloso inicia sua música em homenagem a Michelangelo Antonioni, em seu novo CD, Noites do Norte. Caetano, sempre tão conceitual, matou a charada. Ao longo dos anos 50, o grande diretor italiano desenvolveu o estilo adequado à sua visão de mundo. E chegou à célebre trilogia da solidão e da incomunicabilidade, no começo dos anos 60, formada pelos filmes A Aventura, A Noite e O Eclipse. Neles, o silêncio é fundamental. O homem moderno, diz Antonioni, perdeu o sentido da palavra, do primitivo. Está condenado ao vazio existencial, que ele filma com uma espécie de desespero elegante. A Noite reestréia nesta segunda-feira, em cópia nova. A empresa Pandora, de André Sturm, tem feito um belo trabalho de recuperação dos clássicos que construíram a grandeza do cinema italiano nos anos 50 e 60. Já trouxe Federico Fellini (As Noites de Cabíria e A Doce Vida), Luchino Visconti (Rocco e Seus Irmãos). O sonho de Sturm é recolocar na tela, completa, a trilogia de Antonioni. Ainda não conseguiu trazer A Aventura. Começa com o filme intermediário. Há críticos (Robin Wood) que acham que é impossível entender A Noite sem ter visto A Aventura. É verdade só até certo ponto. Os três filmes desenvolvem um discurso coerente, um explicando o outro, um fazendo avançar o outro. Mas são independentes, não são seqüências que dêem continuidade a uma história. Aliás, Antonioni foi um dos autores que demoliram, no cinema, a idéia de que um filme deve necessariamente contar uma história. Os dele articulam situações numa progressão dramática, mas o que importa é menos a história - uma noite na vida do casal Lídia e Giovanni - do que os climas, os silêncios. É curioso como certas paisagens se repetem. Na abertura de Rocco, Visconti mostra a chegada de Rosário Parondio e seus cinco filhos à estação ferroviária de Milão. A família Parondi rompeu com a estrutura feudal da Lucânia, no sul agrário, e veio tentar a sorte na industrializada Milão, no norte da Itália. Visconti filma a Milão da periferia, dos prédios populares, dos parques como a Ghisolfa, onde Nádia cospe seu ódio contra Simone e termina brutalmente assassinada. Antonioni também situa A Noite em Milão. Abre seu filme com a imagem do edifício projetado por Pier Nervi, um daqueles momentos em que a arquitetura vira mesmo arte. Uma arte a serviço do conforto e bem-estar do homem contemporâneo, a culminação de um desenvolvimento técnico (e artístico). Antonioni filma a Milão dos ricos. Descobre que seus ricos são tão infelizes e até mais do que os operários de Visconti. Consome-os o tédio, o vazio. Qual é o sentido da vida quando, aparentemente, se tem tudo e não existe satisfação? Quando a solidão e a incomunicabilidade - aquilo que antigamente se chamava de alienação, uma palavra hoje em desuso - aprisionam as pessoas com seus grilhões psicológicos? Na seqüência inicial de A Noite, Antonioni rapidamente estabelece que Lídia e Giovanni, interpretados por Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni - no ápice da arte de ambos -, casados há dez anos, estão em crise na relação e a crise dele é ampliada pela insatisfação com a carreira de escritor. Ambos visitam um amigo no hospital (Bernhard Wicki, o diretor de A Ponte). O amigo é doente terminal. Precisa desesperadamente de apoio e solidariedade. Diz que eles são seus únicos amigos. A seqüência termina com Lídia contra uma parede branca, olhando o vazio. Antes disso, Giovanni é atraído por outra paciente, uma ninfomaníaca, que também precisa desesperadamente de contato. Um homem, qualquer homem. Sentimentos, sexo, a finitude, a morte. Está tudo colocado aí. Lídia e Giovanni são convidados para uma festa - o filme passa-se durante 24 horas, talvez menos, de um sábado da tarde a um domingo de manhã. A aurora, segundo Antonioni. Para muitos autores, a chegada do sol equivale à salvação. Não para Antonioni. Suas auroras não são libertadoras. Mas a noite de Lídia e Giovanni não é completamente vazia porque eles conhecem Valentina (Monica Vitti, a musa do diretor na época, morena). A rica Valentina também é consumida pelo tédio, a nóia, mas estabelece uma corrente de solidariedade com o casal que tem um valor quase terapêutico. Torna mais light o desespero de Antonioni. O filme termina nessa manhã em que Lídia e Giovanni confrontam-se com o vazio de sua relação. Ela tira uma carta da bolsa. Lê o que é uma bela declaração de amor. Giovanni quer saber quem escreveu aquilo. A chave do filme está na resposta de Lídia. Giovanni lança-se brutalmente sobre ela, querendo fazer sexo. Continuam unidos, mas está longe de ser o happy end hollywoodiano. Esse é, como já se disse, o filme intermediário de uma trilogia. O primeiro, A Aventura, começa com o desaparecimento de uma mulher. Seu amante e a amiga dela iniciam uma busca que os lança nos braços um do outro, numa narrativa que muitos críticos, na época, definiram como anti-romance cinematográfico, em oposição aos códigos tradicionais de Hollywood. O terceiro filme, O Eclipse, explica o primeiro. O título é revelador - Antonioni não filma um eclipse do sol ou da lua. Filma o eclipse do gênero humano. Os personagens, Vittoria e Piero, interpretados por Monica Vitti e Alain Delon, desaparecem de cena, como Lea Massari no começo de A Aventura. A cidade continua - carros, luzes, prédios, um entardecer que tem o sentido de um final para o homem. Antonioni, com sua trilogia, exerceu forte influência sobre o cinema de todo o mundo, nos anos 60. O Walter Hugo Khouri de Noite Vazia percorre a mesma trilha do vazio existencial, mas no Brasil é possível identificar a influência de Antonioni num diretor que pratica um cinema completamente diferente - o sol social que castiga os personagens de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, também é um sol existencial. Há nesse filme paredes brancas e uma desolação dos cenários e objetos que, numa perspectiva diferente, terminam expressando uma maneira de armar o plano e nele colocar o ator para falar sobre o homem no mundo que não é tão diferente assim do cinema de Antonioni. Concluída sua trilogia, ele prosseguiu fazendo filmes que marcaram época. Com Blow Up - Depois Daquele Beijo, retrabalhando a obra-prima de Alfred Hitchcock, A Janela Indiscreta, discutiu não só a angústia do homem contemporâneo mas a linguagem com uma riqueza e complexidade que faz desse filme uma daquelas obras, raras, que justificam a existência de uma arte. A doença (um derrame), se condenou Antonioni ao silêncio, privando-o de voz, não o tornou incomunicável. Ele continua filmando, dando seu testemunho sobre esse desespero, vamos repetir a palavra, elegante que dá o tom de seus filmes. Além das Nuvens não é tão bom quanto A Noite, mas Antonioni continua grande. O artista que ajudou a colocar o silêncio na tela diz mais coisas do que todas essas barulhentas aventuras que Hollywood não se cansa de produzir. A Noite (La Notte). Drama. Direção: Michelangelo Antonioni. It/61. Duração: 120 minutos. Cinesesc, às 14h45, 17 horas, 19h15 e 21h30 (amanhã não haverá primeira sessão). 12 anos.

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