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A saga dos Alcântara: 240 anos de história e arte

Documentário de Daniel Solá Santiago traça trajetória de descendentes de escravos que chegaram de Angola a Minas Gerais em 1760

Por Agencia Estado
Atualização:

O paulistano Daniel Solá Santiago está pronto para estrear na direção em alto estilo. Não que esteja rodando uma ficção de orçamento gigantesco, ou aproveitando as mais modernas técnicas de filmagem digital. A nobreza do debute de Santiago está na riqueza cultural de seu objeto de filmagem: a Família Alcântara. Esses descendentes de escravos africanos que vieram de Angola para Minas Gerais em 1760 talvez sejam, no Brasil de hoje, o que há de mais representativo no campo da preservação de uma identidade afro-brasileira. Só por isso, já mereciam um documentário. E ganharam um de Santiago. O lançamento do filme no Brasil deve ficar para abril de 2001, no Festival É Tudo Verdade. Após o evento, o diretor planeja pré-estréias em Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, para depois ser transmitido por canais de televisão, como a TV Cultura, que dá apoio ao projeto. Mas ainda no final deste ano, Santiago quer levar o documentário ao Fespaco - Festival Panafricano de Cinema - que acontece em Burkina Faso. "O Fespaco é uma grande festa e seria uma honra ver nosso filme passando lá, principalmente para saber o impacto sobre os africanos ao verem uma família tão parecida com as deles vivendo no Brasil", diz. Os Alcântara não estão isolados do mundo, nem se comunicam em dialeto africano. Ao contrário, transitam pelo mundo artístico e já chegaram a fazer parcerias com gente do calibre de Martinho da Vila, Chico César e Naná Vasconcelos. "O que há de mais notável é que eles não precisaram se engessar nessas raízes para fortalecer sua cultura", diz Lilian Solá Santiago, irmã do diretor e produtora executiva do documentário. Ela cita como exemplo o músico Pedro Antônio Thomé, atual maestro do coral que foi ao Canadá estudar música, de onde trouxe influências para o grupo. "Hoje eles cantam modas em português, blues em inglês, e até músicas do folclore chinês, ainda que tenham consciência que sua arte maior são as músicas da congada, cantadas em português e em dialetos nagô e banto", complementa o irmão. O diretor está finalizando o filme neste mês, coletando imagens das três principais atividades da família: o grupo de teatro, que tem ao todo sete peças; o coral, que já gravou dois CDs; e a congada, uma festa religiosa anual, de celebração à Nossa Senhora do Rosário. No início deste ano, Santiago filmou aproximadamente 50 horas de depoimentos das 60 pessoas do núcleo da família e também de amigos, no município de João Monlevade, à 100 km da capital mineira. Durante as festas de julho, no Quilombo de Caxambu, dentro do município de Rio Piracicaba, Santiago pretende filmar cerca de 300 outros parentes afastados que se juntam ao núcleo familiar para a celebração. "Estamos trabalhando o imaginário da Família Alcântara, que nada mais é que o registro da sua tradição oral", diz o diretor. "E essa tradição fez com que a família mantivesse a memória de seus antepassados de uma maneira mágica." O documentário se chamará simplesmente Família Alcântara. O trabalho coopera com o cuidado que as últimas gerações da família têm tido para registrar suas tradições, que até hoje são passadas apenas oralmente. No êxodo da família na década de 50 de sua terra original, em Rio Piracicaba, para a zona industrial de João Monlevade, a Dona Mena (membro mais velho da família, hoje com 93 anos) fez o que pode para incutir a importância de manter a cultura da família. Naquela época, começavam os trabalhos de alfabetização das crianças e com iniciativas como a fundação do teatro e do coral. Cassemira Thomé, a Nini, irmã do maestro, tratou de escrever as peças e as músicas do coral, que depois o irmão passou para partituras. Os CDs - um com todo o coral e outro só com as crianças da família - também contribuíram para o registro. "O documentário está sendo muito importante para manter a família unida", confirma Nini. Cinco pessoas - Daniel Solá Santiago já vem de longa data trabalhando em cinema. Foi o responsável pelo set de filmagem de longas como Pixote - A Lei do Mais Fraco, de Hector Babenco, e Eles Não Usam Black-tie, de Leon Hirzman. Depois fez as produções de Silvino dos Santos - O Cineasta da Selva, de Aurélio Michilis; Rota dos Orixás, de Renato Baribieri; Ed Mort, de Alain Fresnot; e em 98 trabalhou com Ricardo Dias no documentário Fé. "Com Família Alcântara estou recuperando minhas origens cinematográficas, pois comecei fazendo documentários em 16 milímetros", diz Santiago, lembrando a época em que produziu o Globo Repórter e as séries Gente Que Faz (para Rede Globo) e 500 Anos de História do Brasil (para GNT). Em Família Alcântara, pela primeira vez, vai assinar a direção, mas faz questão de não ser confundido com cineasta: "Eu me sinto documentarista e produtor - cineasta é pegar pesado", brinca. O extenso currículo foi fundamental ao diretor quando precisou acumular funções de produção. A idéia era reduzir a equipe, baixar os custos e o impacto no cotidiano da família, o que determinou a boa aceitação dos Alcântara. No primeiro set de filmagem, a equipe contava com somente cinco pessoas: um motorista, uma maquiadora e cenógrafa, um responsável pela fotografia (Adrian Cooper), outro pelo som (Wladimir Martins) e o próprio Santiago, além do apoio na pesquisa histórica de Marcelo Manzatti, da ONG Cachuera!, que estuda a cultura folclórica do sudeste brasileiro. "O Marcelo deu embasamento ao tema. Foi com o trabalho dele que conseguimos desvendar uma série de coisas sobre as quais só tínhamos referências", diz Santiago. Mazatti cuidou de rastrear a procedência das informações sobre a formação étnica da família. "Grande parte das informações procediam, pois involuntariamente os Alcântara passaram de geração em geração as raízes e histórias dos antepasados", conta Manzatti. Ele também deu assessoria sobre significados de expressões da congada e de outras atividades dos Alcântara. Marketing - Captação, este fantasma, também assombra a produtora de Santiago, que precisa recolher um pouco mais de verba para finalizar seu documentário. Lilian informa que o BNDES está dando o principal apoio via Lei do Audiovisual, com R$ 250 mil, para a primeira parte. Mas o projeto todo está orçado em R$ 600 mil, incluindo finalização e, principalmente, lançamento. Segundo ela, já foram feitos contatos com algumas empresas para viabilizar o patrocínio, nada ainda foi acertado. Além dos benefícios das leis de incentivo à cultura, a meta é veicular a imagem da empresa à marca da Família Alcântara, que já foi criada e representa as diversificadas atividades culturais do grupo. "Para viabilizar este diálogo com as empresas criamos um logotipo, um material de marketing e um plano de cotas", conta Santiago. Lilian ressalta a importância de apoio financeiro acrescentando que o coral e o teatro são coisas que, embora fundamentais à família, não dão todo o suporte econômico. "É o que os mantém unidos, mas cada um depende daquilo que por acaso consegue desembolsar da profissão, seja como faxineira, seja na única indústria da região, a Belgo Mineira".

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