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A questão palestina sem máscaras ou clichês

Paradise Now, do diretor Hany Abu-Assad, conta um dia da vida de dois rapazes comuns que acabam por se transformar em homens-bomba

Por Agencia Estado
Atualização:

Paradise Now, que ganhou o Globo de Ouro e desponta como um dos favoritos para o Oscar de filme estrangeiro, é um filme corajoso. O título se refere àquilo que se promete aos mártires - o paraíso, agora. É assim que se explica aos camicases islâmicos o que vai acontecer depois que acionarem o dispositivo que irá explodir tudo (e todos) em volta e a si mesmos: quatro anjos descem do céu para buscá-los e, a partir daí, será o prazer eterno. Pois bem, Paradise Now se propõe a acompanhar de perto dois desses homens-bomba palestinos, no grande dia da vida deles. Grande? Bem, esse dia acontece quando Khaled e Said (Ali Suliman e Kais Nashef) são informados de que deverão cruzar a fronteira de Israel, chegar a Tel-Aviv, escolher um bom lugar, cheio de gente, e então explodir as bombas que levam em torno do corpo. Hany Abu-Assad, o diretor, faz questão de descer a detalhes. Um dos suicidas deve explodir primeiro. Daí quando se instalar o pânico e com a aglomeração, o outro aproveitará melhor ainda o seu sacrifício, pois atingirá um maior número de pessoas. A estratégia de Abu-Assad é dar face humana a esse mundo obscuro e aterrorizador. Khaled e Said são dois jovens comuns, cheios de vida, trabalham, têm sonhos e aspirações. Há ainda um complicador ou, se quiser, um tempero, Suha (Lubna Azabal), moça viajada, por quem um dos dois se interessa. Suha é filha de um desses mártires. Como o pai morreu nessas circunstâncias, ela foi viver no exterior. Quer dizer, saiu do seu mundinho, ganhou experiência, viu e conheceu pessoas diferentes e agora enxerga tudo de outro jeito. Funciona, na história, como um elemento regulador. Mas o curioso - e que deve provocar indignação em alguns setores - é que o esperado ambiente de fanatismo é bastante atenuado. O que causa surpresa, dadas as circunstâncias. Afinal, espera-se, se alguém se dispõe a dar a vida por uma causa, ele precisa estar religiosamente determinado a fazê-lo. Precisa estar cego para o mais elementar instinto humano, que é o de sobrevivência. No entanto, o que torna o filme precioso é seu estudo, não do fanatismo, mas da hesitação. Khaled e Said terão um dia inteiro para repensar e reavaliar uma opção à qual aderiram sem vacilar - até o momento em que ela se apresenta de fato, como um dado de realidade. E, nesse sentido da espera, tudo passa a ser ritualístico: o corte de cabelos e barbas para que pareçam tipos normais, em Israel. Serão vestidos com ternos formais porque o pretexto para cruzar a fronteira é que se dirigem a um casamento. Por baixo da camisa, as bombas são instaladas, presas aos corpos por fita adesiva. Há um ensaio para a gravação de uma fala revolucionária, que será divulgada após o atentado. E, aos dois futuros heróis, será servida uma última refeição. Já se viu aí uma alusão aos Passos da Paixão, com a Última Ceia e a meditação no Jardim das Oliveiras. Como a dizer que, naquela mesma região, 2 mil anos atrás também se vivia uma ocupação cruel e esta criava um caldo de cultura favorável a mártires e fanáticos. E que tudo acabou dando início não apenas à libertação, mas a uma forma dominante de cultura e religião. Do ponto de vista cinematográfico, Paradise Now parece bastante consistente. Funciona como um thriller. Um suspense político, que se sustenta pela tensão causada no espectador, mas também não barateia o entorno do qual tira a sua seiva. Entre tantos filmes anódinos, ou apenas bem-intencionados, este tem um ponto de vista definido. Coloca a questão pelo ponto de vista dos palestinos. E, desse ângulo, revela as contradições internas do movimento de resistência à ocupação de territórios. Está aí a sua riqueza, tanto temática como cinematográfica, propriamente dita. Não se encontram personagens estereotipados, pelo menos entre os protagonistas. A verdade é que os chefes do movimento clandestino, aqueles que decidem quem vai se sacrificar em nome de Alá, parecem bem menos matizados. E talvez não o sejam mesmo, na vida real. Afinal, quem tem de decidir quem será a bucha de canhão para sua causa deve dispor de um senso moral tanto elástico quanto implacável. E isso se expõe na maneira como os chefões tratam seus pupilos que partem para a morte. Há também um certo cinismo circundante, que não é poupado ao espectador. Por exemplo, quando se descobre uma banca de vídeos piratas mostrando aquelas declarações políticas dos camicases, gravadas antes que partissem para suas missões.

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