'A Questão Humana' trata do horror que se mantém entre nós

Filme aproxima universo do nazismo com gerenciamento empresarial com história do psicólogo Simon

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
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Entra-se em A Questão Humana como em um pesadelo. Aos poucos, sem se dar conta, como quem caminha em terreno conhecido e, de repente, se vê às voltas com um mundo estranho. No entanto, pouca coisa, no início, deixa adivinhar esse percurso. Verdade, as primeiras cenas são um tanto inquietantes. Enquanto sobre uma parede se vêem números sucessivos, uma voz em off conta a sua história.   Veja também: Trailer de 'A Questão Humana'    A voz é de Mathieu Amalric, que interpreta Simon, psicólogo da filial francesa de uma multinacional alemã do ramo petrolífero. Em frases simples, Simon explica seu trabalho. Ele acompanha os jovens executivos da empresa. Promove jogos e dinâmica de grupo. Tudo no sentido de canalizar a "natural agressividade" de cada um para que ultrapassem seus limites. Para que essa disposição guerreira, estimulada, se coloque a serviço da competitividade empresarial. Nada que cause pasmo a quem quer que trabalhe numa corporação contemporânea.   Simon é encarregado de um trabalho suplementar. Deve vigiar um diretor-geral, cujo comportamento parece suspeito. Precisa fazer uma espécie de perfil da sanidade mental desse veterano, Mathias Jüst (Michael Lonsdale). Usa de uma artimanha. Mathias era violinista de um quarteto de cordas da empresa, anos atrás. Simon diz que tem vontade de repetir essa prática musical e portanto está pesquisando o tal quarteto. Vai conversar com os músicos, todos ainda empregados na petroquímica.   Num certo nível, A Questão Humana, baseado no romance homônimo de François Emmanuel, é um filme de investigação. Simon, o psicólogo, arguto no emprego dos novos métodos gerenciais, busca descobrir alguma coisa e, no meio do caminho, acaba por encontrar o que não imaginava no início. Como acontece com freqüência com os investigadores, ele próprio se altera durante o processo. Nem sempre essa alteração é para melhor, ou pode ser colocada na conta simples de um acréscimo de experiência. Simon encontra alguns esqueletos no armário da empresa e a sua própria estrutura, como pessoa e como profissional, parece suportar mal o peso da descoberta.   Há no filme uma linha que conduz do modelo empresarial contemporâneo ao Holocausto. Mas não seria justo (ou seria uma leitura muito linear) dizer que é um filme demonstrativo. A coisa é bem mais sutil e as correlações entre a desumanização dos campos de concentração e os métodos da moderna empresa passam pela análise da linguagem. Por exemplo, dos relatórios de extermínio que se referem ao assassinato em termos estatísticos à manipulação contemporânea do quadro funcional, tratada à base de eufemismos como "reestruturação" ou "reengenharia".   A neutralização da linguagem entra em contradição com as ações que designam. Um assassinato em massa torna-se simples gestão de recursos. A manipulação do quadro funcional é apenas uma variável num quadro de planejamento tecnocrático. Essa aproximação entre a racionalização do Holocausto e os métodos de gerenciamento empresarial causou muita polêmica na França quando o filme foi lançado em setembro do ano passado. Houve quem o acusasse de estabelecer ligação mecânica entre duas realidades bem distintas. Mas houve quem visse no filme o exemplar mais bem acabado do que pode ser um cinema político do século 21.   O que se pode dizer de A Questão Humana é que, mexendo nesse tema explosivo, procura jamais ceder ao didatismo. A própria dinâmica cinematográfica empregada desafia conclusões simplistas. O filme progride em tons frios, às vezes gélidos. A cor é desmaiada. Funciona em registro dessaturado, no qual a cor tende ao preto-e-branco. A música é discreta, as atuações são contidas. Em especial a de Amalric, depositário de uma terrível realidade e que sofre uma espécie de decomposição mental durante o processo.   Tudo o que vemos, nós espectadores, passa pelo seu olhar. Ele é o narrador. Fala em off, mas não se afirma como um narrador neutro. Sofre com o decorrer da história. E pode estar contaminado por aquilo que narra. Essa suspensão progressiva da confiabilidade do narrador dá ao filme uma ambigüidade progressiva. Ela acompanha a derrocada mental de Simon. Uma decomposição, no entanto, que significa um progresso rumo à lucidez. O Simon íntegro do início é aquele que nada vê. O Simon perturbado do fim é aquele que enxerga.   O filme tem esse tom desestabilizante. Sugere (mas não impõe) as implicações possíveis do poder tecnocrático quando desligado da ética. Sugere, mais uma vez, que o monstro da opressão pode já estar entre nós. Devidamente disfarçado por uma linguagem cheia de eufemismos, termos neutros e assépticos. Quando as palavras perdem seu sentido, é o mundo que fica sem significado. E então o horror ganha espaço.

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