A polêmica em torno de '365 Dias', filme controverso da Netflix

Produção inspirada em trilogia de romances eróticos poloneses guarda semelhanças com 'Cinquenta Tons de Cinza'

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Por Bethonie Butler
Atualização:

Uma das atrações mais populares da Netflix neste momento é o filme sobre um chefe da máfia italiana que sequestra a mulher por quem está apaixonado e exige que ela passe o próximo ano – 365 dias, como indica o título – em seu palacete siciliano. “Estou dando a você a chance de se apaixonar por mim”, diz ele. (Alerta de spoiler: ela se apaixona mesmo). A narrativa, uma produção polonesa baseada numa trilogia de romances eróticos publicados na Polônia, é “controversa”, de acordo com uma descrição da Netflix, e não há dúvidas quanto a isso. Mas a chegada do filme à plataforma no mês passado se polarizou. 365 Dias foi muito criticado por sobreviventes de agressões sexuais, como a cantora Duffy, que numa carta aberta a Reed Hastings, CEO e cofundador da Netflix, disse que o filme “glamouriza a realidade brutal do tráfico sexual, do sequestro e do estupro”. E também tem sido objeto de memes grosseiros no TikTok, centrados nas cenas de sexo explícito do filme e em seus protagonistas extraordinariamente atraentes. 

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A trama de '365 Dias' 

365 Dias começa com uma reunião de negócios na cobertura de um prédio que rapidamente fica angustiante: um chefe da máfia e seu filho são baleados depois de se recusarem a participar de uma operação de tráfico sexual envolvendo garotas menores de idade. Quando o filho perde a consciência, ele pensa na mulher que viu alguns minutos antes, na praia lá embaixo. Pulamos cinco anos para o futuro e descobrimos que o filho, Massimo (Michele Morrone), sobreviveu e assumiu a chefia dos negócios da família, mas está mais interessado em procurar a mulher que viu na praia naquele dia. Então entra Laura (Anna-Maria Sieklucka), uma executiva de vendas que, por coincidência, chega para passar férias na Sicília com o namorado careca e chato, ao mesmo tempo que Massimo está passando pelo aeroporto. Algumas cenas protocolares depois, ela larga o namorado e, enquanto está procurando o hotel, é encurralada por dois homens. Ela acorda na vila de Massimo, sem a menor ideia de onde está. Quando ela finalmente encontra seu captor (ao dar de cara com um retrato gigantesco de seu rosto na parede), ela desmaia. Massimo aparece pressionando sensualmente um cubo de gelo contra seus lábios. “Chupe”, ele diz a ela. “Você teve uma reação ao sedativo.” Quando Laura se levanta com raiva, ele fica agitado e a empurra sobre uma cadeira, para que ela não “desmaie de novo”. “Sente... aí”, ele diz, com um tom de voz mais severo. “Você quer saber por que está aqui ou não?”. Massimo então confessa que foi a lembrança de seu rosto que o ajudou a sobreviver ao tiro. “Em algum lugar dentro de mim, eu tinha a sensação de que um dia você apareceria na minha frente e seria minha”, diz Massimo a Laura. “Você só pode estar de brincadeira”, diz Laura. “Não sou de ninguém, não sou um objeto. Você não pode me ter assim, me sequestrar e achar que sou toda sua.” “Eu sei”, ele diz. “Mas é por isso que vou lhe dar uma chance de me amar.”

O contexto

Dirigido por Barbara Bialowas e Tomasz Mandes, 365 Dias guarda algumas similaridades com Cinquenta Tons de Cinza, a trilogia de best-sellers eróticos que virou uma popular franquia de filmes. Blanka Lipinska, que escreveu a série de livros 365 Dni e participou da elaboração do roteiro do filme, reconheceu semelhanças entre seus livros e os filmes da franquia, grande sucesso de bilheteria que também enfrentou seu próprio quinhão de controvérsia. Mas, apesar de todas as críticas feitas a Cinquenta Tons, o primeiro filme trata do consentimento de uma maneira bem pontual – ainda que muito debatida: a protagonista repassa todo um contrato detalhando as condições de seu relacionamento de dominação e submissão.

Drama erótico polonês lidera lista dos mais vistos do serviço de estreaming. Foto: Netflix 

Em 365 Dias, quase nada indica que Massimo e Laura estejam embarcando numa experiência consensual de qualquer tipo que seja. As bandeiras vermelhas, por outro lado, são muitas. Uma cena anterior mostra Massimo recebendo sexo oral de uma comissária de bordo de um jato particular, o qual ele propõe com nada mais que um pedido sussurrado e seu olhar ardente. Depois de sequestrar Laura, ele se recusa a deixá-la ir embora. Ele a toca repetidas vezes sem o consentimento dela, como, por exemplo, na vez em que ela se vê amarrada dentro do avião dele. A repercussão. Quando os dois finalmente fazem sexo, é uma relação consensual – ou, pelo menos, é o que somos levados a acreditar – e iniciada por Laura, numa cena tão selvagem que gerou sua própria hashtag. Mas muitos dos críticos do filme vêm apontando suas falhas em abordar o consentimento, e alguns chegaram a dizer que o enlace entre Massimo e Laura mais parece síndrome de Estocolmo. Duffy, que num ensaio publicado em seu site no ano passado disse que havia sido drogada e estuprada depois de um sequestro, qualificou a decisão da Netflix de “irresponsável” numa carta aberta publicada pelo site Deadline. “Algumas pessoas devem estar dizendo: ‘é só um filme’. Mas não é ‘só um filme’ quando tem grande influência em distorcer temas tão silenciados como o tráfico sexual e o sequestro, transformando tudo em erotismo”, disse ela. A cantora também fez um apelo àqueles que assistiram ao filme: “Peço que as milhões de pessoas que gostaram do filme reflitam sobre a realidade do sequestro e do tráfico, da exploração sexual, de uma experiência que é o extremo oposto da fantasia glamourosa retratada em 365 Dias”. Também houve muita repercussão ao filme no TikTok, onde um “desafio dos 365 dias” levou alguns usuários a mostrar machucados como consequência de sexo violento e a expressar interesse num sequestro de Morrone.  Mik Zazon, ativista de body positivity (algo como positividade do corpo, em tradução livre), com mais de 710 mil seguidores no aplicativo de compartilhamento de vídeos, criou uma petição na Change.org pedindo à Netflix que tirasse o filme do ar. No momento da redação desta reportagem, a petição tinha mais de 69 mil assinaturas. Existem no site outras petições com solicitações semelhantes. “Quando a cultura pop romantiza cenas de comportamento abusivo, ela faz com que o abuso seja mais aceito como uma coisa normal e romântica do que é na vida real”, escreveu Zazon num post de Instagram com o link para sua petição.

O que diz a Netflix?

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A Netflix se recusou a fazer comentários para esta reportagem. Mas recentemente o Guardian citou um porta-voz não identificado que observou que o filme fora apenas licenciado – e não produzido – pela Netflix. “Acreditamos firmemente em dar a nossos membros ao redor do mundo mais opções e controle sobre a experiência de visualização da Netflix”, disse o representante. Em outras oportunidades, a Netflix reagiu a algumas críticas a seus títulos, chegando a adicionar avisos de conteúdo e a remover uma cena controversa de sua adaptação 13 Reasons Why. A empresa também recebeu críticas por Baby – um drama italiano baseado numa história real sobre uma quadrilha de prostituição de menores – que alguns espectadores acusaram de glamourizar a exploração sexual de adolescentes. Ambas as produções eram originais da Netflix ostensivamente destinadas ao público mais jovem. Mas não é a primeira vez que a empresa enfrenta problemas por causa de seu conteúdo licenciado: What the Health (no Brasil, Que Raio de Saúde), documentário que mostra os benefícios da dieta vegana, chegou a ser criticado por suas alegações supostamente exageradas e enganosas. Ainda não está claro se a reação levará a Netflix a fazer alterações significativas na forma como 365 Dias aparece na plataforma. Mas um pequeno ajuste parece já ter sido feito. Durante a primeira semana na Netflix, a descrição do filme no site dizia: “Ela se sente sufocada no seu novo relacionamento. Mas será que conseguirá viver uma nova paixão quando ficar prisioneira de um outro homem?”. Agora a sinopse é mais direta: “Uma mulher é vítima de um chefe da máfia que a aprisiona e lhe dá um ano para se apaixonar por ele”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU 

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