A intrigante realidade crua de Tsai Ming-liang

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Por Agencia Estado
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Certo, houve mais um filme intrigante de Tsai Ming-liang, "Hei Yanquan", e também o bonzinho, porém inócuo "Fallen", mas o dia de hoje parece ter sido reservado para enfiar goela abaixo da crítica dois ácidos abacaxis, o neofuturista "Children of Men", de Alfonso Cuarón, e o new age "The Fountain", de Darren Aronofsky, que poderia muito bem ser assinado por Paulo Coelho. Primeiro Tsai Ming-liang, cujo título "Hei Yanquan" foi traduzido por um explicativo "I Don?t Want to Sleep Alone". O tema do fundo é a solidão e esse constante apelo humano: queremos ter alguém ao nosso lado, enquanto dormimos ou acordados. A forma como demonstra esse teorema óbvio da fragilidade humana é dois mais inusitados. Um morador de rua de Kuala Lumpur é agredido e fica à beira da morte, caído na rua. É recolhido por outro homeless, que passa a se ocupar dele. Em outra cena, que depois vai se cruzar com a primeira, uma mulher se ocupa do jovem filho da vizinha, que jaz na cama em estado de Coma. Intrigante e desafiador As cenas correm lentas, algumas em tempo real, quando, por exemplo, uma das personagens se ocupa em limpar o jovem paralisado em estado de coma. O tempo é um dos personagens de Tsai Ming-liang. Outro dado é a ausência absoluta de estetização tanto do entorno quanto dos movimentos dos personagens, inclusive quando fazem sexo. Há um naturalismo denso nos movimentos propostos pelo cineasta, que não disfarça a sujeira, os fluidos, o desalinho, as imperfeições dos corpos. Nessa imersão bruta no real, alguns momentos poéticos, como a borboleta pousada no ombro do sem-teto que pesca, pateticamente, na água estagnada das fundações de um edifício abandonado. O filme é bom? Não sei. Faz pensar, agride, e, se emociona às vezes, pouco concede em termos de prazer ao espectador. Se Tsai Ming-liang intriga e propõe desafios ao espectador, "Fallen" se entrega sem nenhuma dificuldade. A queda a que se refere o filme de Barbara Albert é a de um grupo de amigas trintonas que se reúne depois de muitos anos sem se ver no enterro de um professor querido do tempo da faculdade. Depois da cerimônia, caem na gandaia e começa o desfile de frustrações, que vai do sonho revolucionário perdido às ilusões amorosas. Você já viu esse filme antes? Já, não é? Foi feito por Dennys Arcand, chama-se "Invasões Bárbaras" e é muito melhor. Quanto a "Children of Men" e "The Fountain", são problemas mais de curadoria do festival do que de crítica cinematográfica. O primeiro, a pretexto de debater os problemas (reais) da imigração, se joga num futuro no qual as mulheres são inférteis e o mundo virou um caos. A partir dessa premissa, torna-se um filme de ação no qual tiroteios e explosões fazem as vezes de idéias e crítica social. "The Fountain" é pior. Mistura ações paralelas de personagens na Idade Média, no tempo presente e no futuro, reencarnação, vida depois da morte, amores eternos, gurus, alucinações e viagens iniciáticas. Se está concorrendo em Veneza, por que "O Código Da Vinci" não poderia estar? Duas hipóteses, ambas inquietantes, sobre a curadoria de Veneza no caso desses dois filmes: ou não está conseguindo distinguir produtos comerciais de filmes de empenho artístico ou faz essa distinção e mesmo assim cede à pressão das majors para colocá-los em concurso. Cabe à imprensa italiana cobrar do diretor Marco Muller explicações sobre a presença de tais filmes no festival. Mas talvez seja demais esperar isso de uma imprensa que até agora tem se revelado acrítica.

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