"A Estrada" de Fellini em nova cópia

O clássico de 1954, que consolidou o estilo de Fellini reestréia, trazendo Giulietta Masina interpretando a delicada Gelsomina contracenando com o bruto Zampanò

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Por Agencia Estado
Atualização:

Mais um Fellini com cópia nova na parada, e agora se trata de um dos seus filmes mais estimados - A Estrada (La Strada, de 1954). Vencedor do Oscar de produção estrangeira, essa obra provocou discórdia quando concorreu no Festival de Veneza de 1954. Na politizada Itália dos anos 50, de certa forma ainda vivendo as contradições do pós-guerra, causou certo espanto o universo fabular proposto por Federico Fellini em A Estrada. Na história da frágil Gelsomina (Giulietta Masina) e o brutamontes Zampanò (Anthony Quinn) viu-se ecos do catolicismo de um diretor que, no entanto, havia começado na seara do neo-realismo. Ou seja, Fellini foi cobrado (no Brasil, diria-se que foi patrulhado) por tirar o cinema do centro realista e social em que havia sido colocado por Rossellini e Zavattini. Em Veneza, Fellini polarizava com outro ícone, Luchino Visconti, que concorria com Sedução da Carne. Entre os dois o coração do júri balançou, e tanto que escolheram um tertius, o relativamente inexpressivo Romeu e Julieta, de Renato Castelani. Quer dizer, espremido entre o universo fabular e tão pessoal de Fellini, e o decadentismo anunciado de Visconti, o júri preferiu lavar as mãos. Essa historieta de festival é interessante para compreender como o filme foi recebido na época do seu lançamento - ou seja, quando não era ainda o clássico que aprendemos a amar, e não tinha sido batizado pelo aval do tempo. Vendo-o hoje, parece estranha a restrição da esquerda italiana mais ortodoxa. Segundo ela, Fellini teria se esquecido o social. Mas como? Ele está inteiro lá, nas linhas e nas entrelinhas da história. Afinal, Zampanò vai buscar sua acompanhante substituta na mesma família miserável onde havia encontrado a primeira, Rosa, depois que esta morre. O que é aquela Itália precária, que a trupe mambembe, composta unicamente de Gelsomina e Zampanò, percorre numa motoneta caindo aos pedaços, improvisada como carro da companhia? Ou seja, o social estava lá o tempo todo, debaixo do nariz dos críticos e eles não davam por ele. E isso porque o filme, claro, é muito mais do que um desfilar das mazelas deixadas pela destruição da guerra. Fellini vai além, muito além. Por isso, mereceu comentário agudo do crítico francês André Bazin. Fellini, na interpretação de Bazin, é o cineasta que teria ido mais fundo na aplicação do neo-realismo, a politizada escola italiana de cinema que nasceu no pós-guerra. Tão a fundo, que o havia superado e feito dele outra coisa. Esta outra coisa felliniana iria dar muito o que falar nos anos futuros. Em A Estrada ela estava apenas tomando forma. Fellini já não era novato. Havia feito Mulheres e Luzes em parceria com Alberto Lattuada, e depois dirigira sozinho Abismo de um Sonho. Em seguida rodara seu primeiro grande filme, Os Boas-Vidas, e ainda participara com o episódio Agência Matrimonial no longa L´Amore in Città. Mas, segundo seu biógrafo Tullio Kezich (Fellini - Uma Biografia, editado aqui pela L&PM), A Estrada era o projeto inicial de Fellini como cineasta. Ele o acalentou e reescreveu o roteiro durante anos, em companhia de seus parceiros de sempre, Tullio Pinelli e Ennio Flaiano. Por isso, La Strada é a cristalização do estilo Fellini. Um estilo que iria mudar ao longo dos anos, incorporar outros elementos, tornar-se mais ousado e solto nos anos 60, mais lisérgico nos 70 e 80. Mas as linhas de força principais já estavam lá: o circo, ao mesmo tempo como metáfora da vida e microcosmo; o jogo entre a ironia e o melodrama, que se realimentam e anulam as arestas um do outro; e, sobretudo, o profundo humanismo que está irá dar base e consistência ao grande cineasta, até seu último filme. A Estrada é (também) a história de uma conversão. Fellini coloca em cena dois personagens contrastantes, Gelsomina delicada como uma flor, e o bruto empedernido Zampanò. Há uma terceira figura interessante, o Louco (Richard Basehart), que Fellini contratou porque seu sorriso lembrava o de Chaplin. O Louco (o Matto, em italiano) é um equilibrista prodigioso, alguém que se sabe predestinado a morrer cedo. Rival de Zampanò, acaba formando um inocente triângulo amoroso com Gelsomina. Ele é esse elemento de passagem, formador do conflito, que acaba colocando para Gelsomina a pergunta central do filme: o que somos, temos alguma função no universo ou não representamos nada não significamos coisa alguma e nossa desaparição não será sentida por ninguém? A pobre Gelsomina fará a pergunta para si mesma e se consolará com a resposta (provisória) de que, se mesmo uma ínfima pedra tem seu lugar no universo, ela também, mísera criatura, haverá de ter. A ressonância católica, tanto da indagação quanto da resposta, causou a indignação de parte da esquerda italiana, que etiquetou o filme de reacionário. Poucas vezes se viu tamanha estreiteza de visão. Serviço - A Estrada (La Strada). Drama. Direção de Federico Fellini. It/54. Duração 94 minutos. 14 anos.

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