"A Doce Vida" reestréia em cópia nova

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Por Agencia Estado
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Parece incrível, mas A Doce Vida já tem 40 anos. Rever o clássico de Federico Fellini é, em primeiro lugar, constatar essa idade. O preto-e-branco, o modelo dos carros, as roupas, os penteados. Ver na tela atores que o tempo levou, como o grande Marcello Mastroianni, ou destroçou, como a deusa Anita Ekberg. O próprio diretor, maestro entre maestros, já se foi. No entanto, visto de perto, nada parece mais atual que a temática de A Doce Vida, que reestréia nesta sexta-feira, no Cinesesc, em São Paulo. Está lá, à maneira melancólica mas irônica de Fellini, a marca registrada da modernidade, da sociedade do espetáculo, expressão que Guy Debord cunhou em algum momento do passado. De fato, quem é Marcello (Marcello Mastroianni) senão um ser espremido entre os atrativos da vida mundana e um vago apelo de transcendência que lhe fustiga a consciência? Alter ego de Fellini? Claro, sempre e neste caso ainda mais. Nos loucos anos 50, quando a guerra já fazia parte do passado, a Itália mergulhava num otimismo desvairado. Ninguém queria mais saber do cinema neo-realista - do qual o próprio Fellini havia emergido, simplesmente porque ninguém desejava se recordar da violência, da miséria, da humilhação. Outros tempos. Tempo da velocidade, da americanização dos hábitos, dos carros e das mulheres formidáveis. Mas nenhum país tem alguns milênios de civilização nas costas em vão. Na velha Itália, tudo muda e tudo permanece, como se vê na abertura, com a cena da estátua do Cristo sobrevoando Roma, não por qualquer espécie de milagre, mas transportado por um helicóptero, dentro do qual estão os repórteres sensacionalistas e o fotógrafo paparazzo. Passam pela cobertura de um apartamento de luxo e tentam chamar a atenção de algumas moças que tomam banho de sol. O plano místico e a sua desconstrução. O sagrado e o profano, sempre tão próximos em Fellini. Já se disse - e é correto - que A Doce Vida tem a estrutura de um mosaico, ou de um grande afresco moderno. Quadros de uma exposição. Episódios encadeados, uma forma que Fellini apreciava muito e tão antiga quanto o Satyricon, de Petrônio, que ele também adaptou para a tela. Mas aqui não se trata de diálogo entre o mundo antigo e o moderno, pelo menos não diretamente. A atenção se prende àquela quadra de tempo específica, quando o século 20, já cansado de si mesmo, espreitava seu final. Esses quadros móveis incluem a abertura com o Cristo voando, a história de um milagre que parece estar acontecendo num subúrbio pobre de Roma, a chegada da grande atriz, o episódio com o pai, a visita ao castelo dos nobres, a morte do amigo intelectual, a orgia, o finale na praia inóspita. Harém - De permeio, os amores de Marcello, com sua esposa suicida, com a aristocrática Madalena, com Anita, com uma Claudia Cardinale divina, que aparece mais tarde. Uma constelação de mulheres, harém informal, uma fantasia que Fellini realizaria depois em seu Oito e Meio. Nenhuma dessas fêmeas excepcionais consegue preencher o vazio interior de Marcello, que, no entanto, nada tem de intelectual ou de espiritualizado. É um homem do seu tempo, tolo, vaidoso, inseguro. Sente, dentro de si, um vago chamado à ordem, mas não consegue atendê-lo. Aos poucos, vai percebendo que aquele mundo a sua volta é um véu de aparências, de ilusões, uma teia da qual não consegue escapar. Esses sinais aparecem durante a visita do pai, uma das seqüências mais comoventes da história do cinema. O velho deseja refazer, em companhia do filho, sua juventude de farrista. Encontram-se na Via Veneto e caem na noite romana. Vão a uma boate, bebem com as moças, saem no fim da noite para a casa de uma delas. O jovem Marcello vê o pai como um espelho de si mesmo. Vai reencontrá-lo, mais tarde, na casa de uma de suas amigas. O velho passou mal. O que houve? O filme não diz claramente, fala-se em uma crise cardíaca. Não diz, mas insinua. Marcello encontra o pai arrumando cuidadosamente a cama - onde ele se deitou ao sentir-se mal, ou falhou ao tentar transar com a garota? Quer ir embora, voltar para casa, pegar o primeiro trem, deixar para trás uma Roma que já não significa mais nada para ele, abandonar o filho com quem não consegue dialogar. Marcello ainda tenta retê-lo, mas o pai vai embora. Grande Fellini. Quanta ternura, quanta violência contida nessa seqüência aparentemente simples. Mas os sinais de alerta para Marcello se tornam mais evidentes, gritantes mesmo, quando seu amigo Steiner se suicida após matar os filhos. Tragédia, porque Steiner representa a consciência de um tempo infeliz. No meio da esbórnia, era o único a pressentir que o mundo deixava uma guerra apenas para entrar em outra, talvez pior que a anterior - uma lucidez que lhe foi fatal, no fim das contas. Quando a morte de Steiner também é transformada em circo e espetáculo de mídia, Marcello não deixa de notar, por um momento, a alienação em que está metido. Apenas para, no segundo seguinte, recair nela, tão inconseqüente e tão apático como antes. A sua será a trajetória da ignorância, daquele que não aprende nada e não esquece nada. Vem daí o impacto da cena final - antológica -, quando a garota que representa talvez o signo de uma pureza inalcançável o chama do outro lado da praia e ele não entende o que ela lhe diz. Música - No fundo, escrever sobre A Doce Vida é um exercício de frustração, porque o filme fica sempre muito acima de qualquer tentativa de descrição ou análise. Agregar palavras a uma obra como essa parece tão inevitável quanto inútil. De fato, como evocar alguns dos seus pontos luminosos, sem por isso mesmo destruí-los? Mas é obrigatório lembrar de Anita e Marcello na Fontana de Trevi, belos como dois bichos no esplendor da saúde; da cena do palhaço na boate, um subepisódio dentro da epifania que é a história do pai de Marcello; da seqüência no castelo dos nobres; do horror dos farristas diante do ser informe saído do mar; de Claudia vestida de branco. Finalmente, da música, a maravilhosa música de Nino Rota irmão espiritual de Fellini, parceiro, sócio e co-autor, na parte sonora, de alguns dos seus mais importantes trabalhos. Sem ele, o filme não seria o que é. Ver e rever A Doce Vida. Entrar em contato com um clássico e intuir o que significa ser um clássico. Por um lado, é um ponto-limite do cinema, um ápice, perto do qual os outros filmes parecem irrelevantes, medíocres, mesquinhos. O contato com uma obra-prima nos torna exigentes, mais refinados, mas também intimidados - de fato, como ir além dela? Por outro lado, o clássico é formidável em sua incompletude. Quer dizer, move-se, altera-se, a cada vez que entramos em contato com ele, porque, no fundo, incompleta é a nossa compreensão, a nossa limitada sensibilidade, que usamos ao tentar apreendê-lo. Por isso, visitado a cada vez, o clássico se revela um monumento do passado, que se repropõe no presente novinho em folha, recolocando antigos problemas, levantando novos, estimulando indagações. O cinema, entendido como arte empenhada, recusa a simplificação da realidade. Pelo contrário, vai a ela enfrentando toda a sua complexidade, toda a sua estranheza. Marcello encarna esse personagem complexo. O homem típico do fim do século 20 - vazio, tão entranhado na sociedade do espetáculo que nem percebe que está no centro do picadeiro e faz parte de um circo vasto como a vida. Ou intui às vezes esse mal-estar, essa carência de ser, mas essa compreensão limitada é ainda insuficiente para modificá-lo ou movê-lo de sua posição existencial. Marcello é, como todo mundo, inconseqüente, frágil, superficial. Irrelevante, em sua alienação. Humano, nada mais que humano.

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