"A Comilança" de Ferreri estréia em cópia restaurada

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Por Agencia Estado
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Foi há quatro anos, em 10 de maio de 1997. O diretor Marco Ferreri morreu em Paris, aos 69 anos, no dia em que começava mais um Festival de Cannes. Jeanne Moreau subiu ao palco do Palais para homenageá-lo. Foi um pouco melodramática, mas com aquela voz, aquele carisma, quem se atreveria a contestar a grande Jeanne quando ela definiu Ferreri como "um dos nossos", desejou-lhe um repouso tranqüilo, onde estivesse, e encerrou a noite com um "Adeus, amigo" que foi recebido com aplausos, em vez do tradicional minuto de silêncio? Pois bem, Ferreri revive. Não o homem, mas o artista desconcertante, iconoclasta e irreverente. A partir de hoje o CineSesc, em São Paulo, está mostrando o filme mais famoso de Ferreri. A Comilança é de 1973. Estreou no Brasil só em 1979 quando já se haviam dissipado os ecos da polêmica que provocara na Europa. O atraso deveu-se menos ao desinteresse dos distribuidores que aos problemas que o cinema dito de contestação tinha com as autoridades do regime militar. Às vezes os filmes nem precisavam ser censurados. Bastava o medo dos censores. Tudo isso é passado, mas são histórias que vale lembrar. O espectador, principalmente jovem, que for ver A Comilança sem ter referências do autor arrisca-se a tomar um choque. Como o outro filme considerado grande da carreira de Ferreri - Crônica de um Amor Louco, também reestreado, em cópia nova, pela mesma Pandora que traz A Comilança -, é um marco de um tipo de cinema cada vez mais raro nestes tempos de hegemonia do produto audiovisual hollywoodiano. A Comilança agride o espectador para fazê-lo reagir e tirá-lo do seu imobilismo. Há críticos que vêem neste filme um Ferreri filtrado pelo Marquês de Sade. A Comilança seria, ou é, uma variação de Os 120 Dias de Sodoma, que Pier-Paolo Pasolini transformou em filme - Salò - igualmente exasperante. Na história de A Comilança, quatro homens isolam-se num castelo para comer e transar até morrer. Não é muito refinado nem muito sutil. Aliás, não é nem um pouco refinado e menos ainda sutil. A Comilança propõe uma franqueza fisiológica de atitudes, ruídos e situações que não esgotou sua capacidade de perturbar. O filme é forte, sim, tem flatulência, sim, todo tipo de som, produzido por todos os orifícios humanos. Mas o que motivou este filme radical não foi o gosto puro e simples do escândalo e, sim a vontade de contestar, de subverter a ordem estabelecida. Se você acha exagerado, que tal olhar o mundo à sua volta? Há 28 anos, Ferreri investia contra a alienação da sociedade de consumo e hoje pode-se dizer que ela está mais triunfante que nunca, neste mundo neoliberal pós-globalizado. Na busca de etiquetar Ferreri, a mídia apresentou-o como inventor do cinema da crueldade. Ele achava graça e também rejeitava os rótulos de ´marxista´, ´niilista´. Gostava de dizer que era só realista. Ferreri chegou ao cinema no fim dos anos 50. Queria ser veterinário, mas largou o curso no meio, seduzido pelo cinema. Chega a espantar, portanto, que o homem seja tão animalesco em seus filmes, em A Comilança, principalmente. O filme foi escrito por Ferreri com o espanhol Rafael Azcona, seu parceiro nos primeiros filmes que realizou na Espanha. Ambos compartilham o mesmo humor feroz - e negro. Você pode até rir em A Comilança, mas logo vai ficar incomodado com tudo aquilo. Talvez se sinta agredido. Era essa mesma a intenção do diretor. De Luis BuÏuel, nos primórdios de sua carreira, a Michael Haneke - de Código Desconhecido, esse outro filme incômodo -, muitos cineastas tentaram ´épater les bourgeois´. Escandalizar, subverter, irritar a burguesia. Poucos cumpriram tanto seu propósito quanto Ferreri. A Comilança foi um filme profético. Mas é uma experiência árdua e não apenas por sua voltagem crítica. A lentidão com que Ferreri coloca esta verdadeira tragédia na tela acentua a sensação de tédio. Não, ele não errou a mão. Também isso faz parte de um objetivo que ele se propôs a alcançar - e que você pode até discutir, mas não invalidar. Um quarteto admirável contribui para dar intensidade à diatribe de Ferreri. Na verdade, um quinteto, porque aos quatro atores - Marcello Mastroianni, Michel Piccoli, Ugo Tognazzi e Philippe Noiret -, soma-se uma atriz, a não menos notável Andrea Ferreol. Com eles, o diretor atingiu o máximo de sua ferocidade. E se é verdade que nos últimos filmes ele adoçou sua subversão, nem por isso vendeu a alma. Ferreri foi crítico e contestador até o fim. Era o que Jeanne Moreau queria dizer ao defini-lo como "um dos nossos". A Comilança (La Grande Bouffe) - Comédia. Direção de Marco Ferreri. It-Fr/1973. Duração: 125 minutos. CineSesc, em São Paulo, às 15 horas, 17h10, 19h20 e 21h30. 18 anos.

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