'A Árvore dos Frutos Selvagens’ mostra jovem em sua difícil volta para casa

Filme de Nuri Bilge Ceylan traz escritor turco idealista e ambicioso e as muitas dificuldades enfrentadas em seu país; veja o trailer

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:
Cena do filme 'A Árvore dos Frutos Selvagens' Foto: Fênix Filmes

Nuri Bilge Ceylan tem sido uma presença frequente na competição do Festival de Cannes. Até já recebeu a Palma de Ouro – por Winter Sleep/Sono de Inverno, em 2014. Passaram-se quatro anos e, no ano passado, ele concorria de novo, com A Árvore dos Frutos Selvagens. Foi o último filme a ser apresentado. O júri presidido por Cate Blanchett ignorou-o. A última coletiva já ocorre num clima de dispersão. Menos gente, só os iniciados, os admiradores – tietes? – do grande diretor. 

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Ceylan faz filmes lentos, longos – esse tem mais de 3 horas, 188 min. – e intensamente dialogados. Um jornalista chegou a perguntar se não seriam teatrais? Ceylan, de ótimo humor, respondeu que, sim, poderiam ser. Sugeriu ao jornalista que os montasse, qualquer um de seus textos, ou roteiros. Ele os vê como cinema.

Pegue uma cena, o reencontro de Sinan com a namorada. Conversam sob uma árvore de folhas douradas. A conversa é marcada pelo tempo. O tempo do amor, da separação. O tempo é sempre o grande personagem de Ceylan. À sua maneira, ele segue o primeiro – e único? – mandamento de outro grande, o russo Andrei Tarkovski, morto em 1986. Tarkovski definia o cinema como a arte de esculpir o tempo.

Agora, no cinema de Ceylan, o tempo está sempre escoando. Para Sinan, representa espera, revolta, transformação. No início, ele está voltando para casa, o filho pródigo. Sinan é escritor, ou tenta ser. A volta não se faz sem alguma, ou muita, dificuldade. Tem a dívida do pai professor, os diálogos por patrocínio, o embate verbal com o escritor consagrado, a discussão com os dois imans. E, claro, as mulheres – a mãe, a irmã, a ex.

São longas conversas, e Ceylan não faz como os diretores de filmes de ação, que cortam e mudam o ângulo somente para dinamizar o diálogo. Além de deixar a conversa – a palavra – fluir, Ceylan faz movimentos muito sutis de câmera, às vezes nem a mexe.

O plano de longa duração vira a própria sequência, daí a tal ‘teatralidade’, como se os diálogos filmados pela câmera pudessem ser reencenados num palco. Mas é cinema, e em externas ou em interiores, a câmera quase sempre está próxima dos atores – exceto quando Ceylan filma céus tormentosos para reduzir o humano a proporções liliputianas, face à majestade da natureza, ou quando mostra a chuva e a neblina modificando a paisagem.

Como artista visual, Ceylan tem o sentido do drama e transforma o próprio cenário em símbolo. O monumento ao cavalo de Troia, os ornamentos da ponte, o poço, tão essencial no desfecho da narrativa.

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Como sempre, seus atores são excepcionais. Dogu Demirkol, que faz Sinan; Murat Cemcir, como seu pai jogador, afundado em dívidas. Como os diálogos, os personagens também são chekhovianos. Pequenas vidas destroçadas em choque com a realidade.

Algumas imagens são particularmente perturbadoras. Beiram o surreal, as formigas no bebê adormecido. Sinan ainda luta para publicar o primeiro livro. Choca-se com o pai, a mãe, porque a família o pressiona a fazer um concurso público para ter segurança.

O pai que virou um burocrata representa o que ele não quer ser. Sua vulnerabilidade como jogador é motivo de vergonha para a família, e o filho. O escritor consagrado não lhe é menos palatável. O talento oficial traz sempre algo de comprometido, ou assim lhe parece, e Sinan quer ser livre, crítico, indomável.

É um personagem arrogante na sua intransigência, e ele nem se dá conta de como consegue ser ofensivo em sua (autoconsciente) pureza de princípios. Sente-se superior. Quando polemiza com o escritor, e ele reage, o jovem intimida-se. Foge. Sua trajetória reverbera o idealismo e a inocência face à família, à arte – literatura –, à religião e à política. O retrato do artista quando jovem.

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Palavra e utopia, palavra versus utopia. 

Não se pode esquecer que Ceylan é um autor turco e o beyefendi (senhor) Recep Tayyip Erdogan governa a Turquia desde 2003, primeiro como premiê e, depois, como primeiro presidente eleito pelo voto direto – num processo contestado, é verdade. Erdogan chegou ao poder à frente do partido islamita AKP e, para seus opositores, tornou-se um ditador brutal.

Um dos problemas da Turquia atual é a disputa entre as comunidades interioranas e as cidades. Embora de volta à casa, Sinan não aprecia esse mundo pequeno para sua ambição. É um misantropo, e numa cena chega a dizer que se fosse ditador – como Erdogan? – destruiria tudo aquilo com uma bomba atômica. Expressão da sua revolta, da sua inadequação? 

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Uma das grandes cenas, certamente a mais impressionante, até pelo tour de force técnico, é a longa caminhada de Sinan com os dois imans. Caminham, conversam, os religiosos comem frutas e o tempo todo o que está sendo discutido é o sentido da vida, a moralidade, a religião.

O pai jogador busca o manancial de água para construir o poço. O filho busca outro manancial, o próprio sentido da existência, para erigir sua obra de autor. O jogo da vida, a vida como jogo. Ceylan pode não ter recebido outra Palma, mas acrescentou outro grande filme ao seu já brilhante currículo.

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