'A 100 Passos de Um Sonho' usa comida para falar da vida

'Chef' e 'Bistrô Romantique' também usam a mesma temática

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

E a gastronomia instalou-se nas telas. A dois bons filmes em cartaz - Chef, de Jon Favreau, e Bistrô Romantique, de Joël Vanhoenbrouck -, vem se juntar um terceiro, o melhor de todos. O cinema muitas vezes usou a comida para falar de sexo. O próprio Lasse Hallström, que agora dirige A 100 Passos de Um Sonho, fez isso em Chocolate. Um chef indiano - o garoto que veio da sarjeta, em Mumbai, informa a revista chic de culinária - ganha a segunda estrela do Guia Michelin e está prestes a adquirir a terceira quando redescobre... O quê? O cinema adora contar essas histórias sobre quais valores são os verdadeiros. E, por mais prazer que a boa comida proporcione - Helen Mirren, a dona do restaurante, tem dois orgasmos provando o que Manish Dayal lhe oferece -, o tema de Lasse Hallström é um pouco o de A Festa de Babette: a elevação interior. Há um momento de A 100 Passos de Um Sonho em que Hassan, o personagem de Manish Dayal, tendo ganho para o restaurante de Madame Mallory (Helen Mirren) a segunda estrela do Guia Michelin, está em Paris, à espera da terceira estrela. O garoto da sarjeta de Mumbai - o equivalente humano do ratinho de Ratatouille, é isso? - alcançou muito mais do que podia sonhar, mas aí algo acontece que o leva a questionar tudo, a repensar tudo. É um filme de Lasse Hallström, o diretor sueco de Minha Vida de Cachorro. Cooptado por Hollywood, ele tem conseguido, no cinemão, tornar palatáveis para o grande público temas difíceis como aborto, drogas, morte. Os críticos não o têm em alta conta, mas volta e meia Hallstrom, se supera. A 100 Passos de Um Sonho é o melhor na atual leva de filmes sobre culinária em cartaz nos cinemas.

Seu filme veio se somar a Chef, de Jon Favreau, com o qual o diretor de O Homem de Ferro 1 e 2 - duas estrelas no Guia Michelin do cinemão - retorna a seu primeiro amor, a produção indie, e Bistrô Romantique, de Joël Vanhoebrouck. Três filmes que usam comida para falar de relações, um pouco de sexo, e isso é coisa que o cinema tem feito, e já há muito tempo. Basta lembrar-se de filmes como O Cheiro do Papaia Verde, do vietnamita Tran Anh-hung, e Como Água para Chocolate, do mexicano Alfonso Arau, ou mesmo Chocolate, de Lasse Hallström, em que Juliette Binoche, mais que a fórmula do doce perfeito, descobria o prazer com o cigano Johnny Depp.Chocolate passava-se numa cidadezinha do interior da França, com seu microcosmo de conservadorismo e miudezas. Lasse Hallström volta agora a esse universo, mas em outro contexto, ou com outro propósito. A 100 Passos de Um Sonho começa muito longe dali, em Mumbai, onde, no passado, um garotinho acompanha sua mãe no mercado. Há uma disputa para comprar ouriços do mar e o vendedor percebe como esse menino possui um paladar especial. A mãe é sua mestra na cozinha. Ensina-lhe que a comida tem alma, que é vida, mas é preciso matar o alimento. Cozinhar é liberar/cultivar fantasmas, lição que Hassan carrega para toda a vida, mesmo que, num determinado momento, pareça distanciar-se dela. Uma tragédia lança a família, ou o que sobrou dela, no mundo. E o acaso, ou o problema do freio de uma van, faz com que Hassan, seu pai e os irmãos cheguem a essa cidadezinha onde Madame Mallory tem seu restaurante, já premiado com uma estrela Michelin. Helen Mirren é Madame Mallory, com a classe que você sabe. Ela inicia uma guerra com os indianos que ousam instalar seu restaurante em frente ao dela. Mas é uma mulher justa. Percebe que Hassan é um chef nato. Ele também descobre que será mais útil (para ambos) unir-se a essa mulher, permitindo-lhe ganhar a segunda estrela Michelin de seu restaurante. Hassan quase se perde - e perde o amor de sua vida - ao virar um chef superstar. E aí vem o momento em que, como o crítico em Ratatouille, ele come um prato simples e redescobre tudo. Marcel Proust, o tempo reencontrado. A comida como reencontro interior, elevação espiritual. É interessante comparar A 100 Passos de Um Sonho - a distância é que separa os dois restaurantes, o de Madame Mallory e o de Papa Kadam (Om Puri) - com os outros dois filmes de comida em cartaz. Bistrô Romantique passa-se todo no restaurante do título, e numa única noite, a do Dia dos Namorados. Joël Vanhoebrouck divide seu filme em atos, seguindo as etapas de um menu degustação. É um filme que trata de relacionamentos e acertos de contas, mas cujo tema, como o de Lasse Hallström, é o tempo. A dona do restaurante vê irromper em sua vida, de novo, o homem que foi seu grande amor. E ele propõe recuperar imediatamente o tempo perdido, voando para Buenos Aires, cidade onde, no passado, ambos sonhavam viver seu romance. E agora, como ela vai reagir? Valerá tudo para recuperar o tempo perdido? Ao contrário do Bistrô, com seu cenário concentracionário, Chef é um filme de estrada, sobretudo na segunda metade. O chef, interpretado pelo próprio Jon Favreau, é impedido pelo dono do restaurante de apresentar seu menu inovação. O crítico de gastronomia o destrói na internet, acusando-o de servir pratos requentados de seu cardápio anterior (quando era bom). Inicia-se uma guerra. Ator e diretor, Favreau veio da produção independente, chegou a Hollywood e galgou o sucesso no cinemão. Mas quis voltar ao formato indie. Por quê? Favreau, obviamente, está metaforizando o cinema. O dono do restaurante (Dustin Hoffman) é o produtor que não quer arriscar e serve mais do mesmo - as receitas de blockbusters de sua cozinha. Favreau volta à estrada, ao mundo indie, para ousar de novo. Dá nobreza ao fast-food e ainda embala sua cozinha sobre rodas em ritmos caribenhos. Um filme sobre relações, outro sobre cinema, o terceiro sobre um reencontro interior. E todos falam de amor, e sexo. Do lanchinho à alta gastronomia, a comida, no cinema, compõe um cardápio variado de bons filmes.

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