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2002 começa com "O Senhor dos Anéis"

Por Agencia Estado
Atualização:

Há uma cavalgada fantástica em "O Senhor dos Anéis". É quando a elfa Arwen acolhe Frodo e parte a galope, na noite, enfrentando todo tipo de perigo para salvar a vida do pequeno hobbit. O diretor neozelandês Peter Jackson viu muitos westerns, com certeza. É uma cena tão bem filmada que dá novo sentido à palavra ´eletrizante´, tão desgastada para definir filmes de ação que nem são tão bons assim. Pois bem: "O Senhor dos Anéis", que estréia amanhã em 300 salas de todo o País, inicia o ano sob o signo do grande cinema. O cinema, o que é? Volta e meia você é solicitado a se fazer essa pergunta, a repensar suas expectativas diante da arte que tem pouco mais de cem anos, já foi chamada de arte por excelência do século 20 e ingressou no 21 ampliando seus limites. Há um culto à técnica no cinema, principalmente o de Hollywood. E há as cinematografias mais alternativas, que ainda acreditam que o maior e mais belo de todos os efeitos especiais é o rosto humano. A técnica pela técnica é quase sempre o recurso para disfarçar narrativas ocas, que pouco ou nada têm a acrescentar à vida dos espectadores. A maior surpresa proporcionada por "O Senhor dos Anéis" está na dscoberta que o espectador faz só depois de concluídas as três horas de projeção. Jackson usa tecnologia de ponta para mostrar, na tela, os seres estranhos criados pelo escritor J.R.R. Tolkien na sua saga mítica sobre um certo anel do qual depende o futuro do universo que o autor chamou de Terra-Média. São seres muitas vezes bizarros, que habitam cenários extravagantes. Sem a tecnologia adequada seria impossível colocar na tela a obra portentosa de Tolkien. A grande lição de Jackson consiste em criar uma aventura tão empolgante que o espectador nunca pensa na técnica, de tão envolvido que está nos lances dessa história. É bobagem querer comparar "O Senhor dos Anéis" com "Harry Potter e a Pedra Filosofal". Ambos são distribuídos pela Warner, operam no universo do fantástico, mas pertencem a galáxias diferentes. Na verdade, são grandezas diferentes. Desde que surgiu, em 1954, o primeiro dos três volumes que compõem a saga de Tolkien - "A Irmandade do Anel" -, desenvolveu-se um culto a essa série de livros que, nos anos 60, empolgou a geração hippie e, depois, todos aqueles que embarcaram na onda da contracultura. Havia, de um lado, o encantamento que os livros provocavam no público. E havia, de outro - não estanques, mas um e outro interagindo -, o reconhecimento dos críticos ao portentoso trabalho de Tolkien. Eles perceberam, desde logo, que não se tratava de uma criação banal, mas de uma saga erudita. Ambigüidade "Um anel para a todos governar. Um anel para encontrá-los. Um anel para a todos trazer e, na escuridão, aprisioná-los." Tolkien criou, na Terra-Média, a lenda do anel que detém em si o poder do mundo. O mago Saruman precisa do anel para consolidar seu poder. Cria seres das trevas para procurá-los. Mas o anel cai na mão de Frodo e o hobbit, instruído por outro mago, Gandalf, inicia a jornada para destruir o anel - o que só poderá ser feito no local onde ele foi forjado. É uma jornada de muitos perigos e permanente encantamento. No processo, Frodo ganha muitos apoiadores: o humano Aragon, também chamado de Passolargo; o leal Sam, hobbit como o herói; o elfo Legolas, mortífero com o arco e a flecha; a elfa Arwen; a rainha élfica Galadriel, que num momento experimenta a tentação do poder que o anel representa. Bem e mal, às vezes opostos e rigorosamente codificados, quase sempre misturados, porque um pouco da grandeza da saga de Tolkien vem da sua consciência de que o homem não é perfeito e está sempre sujeito à tentação. Essa ambigüidade moral do escritor foi, com certeza, o que atraiu o diretor Jackson. No melhor dos seus filmes antes desse - que passa a ser, muitos furos acima, the best -, "Almas Gêmeas", ele partiu de um caso real ocorrido na Nova Zelândia. Nos anos 50, duas garotas mataram a mãe de uma delas, que se opunha à amizade, que considerava doentia. Jackson fez, sobre o assunto, um filme denso e complexo. Não tenta explicar, sabiamente, o que é um mistério. As garotas de "Almas Gêmeas" são ressentidas contra os pais, amargam as conseqüências da falta de diálogo entre as gerações, mergulham num mundo de fantasia que entra em choque com a realidade. Por que algumas pessoas, submetidas a essas circunstâncias, afundam-se na neurose e desenvolvem um instinto assassino enquanto outras escapam ilesas a tudo isso? Jackson nem procura a resposta para essa indagação. Apenas descreve a situação e o faz não em termos realistas, daí a ambigüidade moral que se percebe no seu filme. De novo, a ambigüidade, agora não mais aplicada a uma história real e sim a uma saga permeada de fantástico, habitada por duendes e magos. Ela começa com o hobbit Bilbo, criatura nanica, com pés cobertos de pelos. Ele possui o anel, que logo será transferido a Frodo. Começa aí, no livro, uma narrativa em que entra todo tipo de tempero espalhado pela literatura ocidental escrita e falada: magia, heroísmo, amor cortês, demonismo, erotismo, humor pícaro, tudo aplicado a um tema - o poder. Tolkien incorporou os ditos talmúdicos à tradição nórdica para desenvolver seu relato. Criou uma linguagem, o idioma élfico, que alguns admiradores mais fanáticos falam, como outros falam o esperanto, por exemplo. Referências Assim como Tolkien utilizou um arsenal erudito para erguer seu castelo literário, Jackson também recorre a um monte de estilos e referências para fazer de "O Senhor dos Anéis" a mais extraordinária aventura produzida pelo cinema nos últimos tempos. A aldeia em que vive Frodo evoca Innesfree, o fordiano paraíso de "Depois do Vendaval", a cena da festa parece saída do musical "A Lenda dos Beijos Perdidos" de Vincente Minnelli, e a cavalgada de Erwin evoca o western. Algumas dessas referências, de certa forma, já estavam em "Almas Gêmeas", já que as amigas eram vidradas em Mario Lanza, o tenor da Metro, e o universo de fantasia que elas criavam também era habitado por seres estranhos. Deslumbrante, "O Senhor dos Anéis" lembra que o cinema não tem de ser sempre, mas pode ser maravilhoso. O território da aventura, do fantástico. Os atores contribuem para isso: Ian McKellen, Ian Holm, Liv Tyler, Cate Blanchett, Elijah Wood (que faz Frodo), Viggo Mortensen. Quem diria que, no alvorecer do terceiro milênio, o espectador de cinema deveria a esse último algumas de suas maiores emoções na tela? Mortensen foi sempre tão apagado. Cria, como Aragon, um herói arrebatador. A única frustração que o ato de ver (e rever) "O Senhor dos Anéis" proporciona está ligada ao fato de que o filme é o primeiro de uma série de três. Você sai do cinema rezando para que o 2 esteja em cartaz no cinema ao lado. Mas não, só daqui a um ano. Jackson conseguirá manter o mesmo nível de excelência nos três filmes? É muito provável que sim. Os três filmes já foram integralmente rodados (ao preço de US$ 450 milhões). Jackson exigiu que a série fosse toda filmada na Nova Zelândia. Todo esse investimento, em dólares e tecnologia, é uma injeção e tanto não só para a economia em geral, como para o cinema neozelandês, em particular. Não admira que ele tenha virado um herói nacional.

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