PUBLICIDADE

100 anos de 'Nosferatu', o filme de vampiro que não morrerá

Ao longo das décadas, longa inspirou cineastas, artistas, músicos e designers

Por Roisin Kiberd
Atualização:

Sua silhueta o precede: membros finos e um longo casaco preto, unhas como garras – uma sombra sobrenatural que paira sobre o cinema há 100 anos.

PUBLICIDADE

O filme mudo de F.W. Murnau Nosferatu e seu vilão, Conde Orlok, comemoram seu centenário este ano. O filme retornará aos cinemas da Europa e, em todo o mundo, festivais, conferências, exposições de arte e exibições acompanhadas de música ao vivo estão programadas para homenagear a influência eterna de Nosferatu, que vive como um conto de fadas, um meme e um fantasma cinematográfico.

Ao longo das décadas, Nosferatu inspirou cineastas, artistas, músicos e designers, com a figura de Orlok aparecendo em lugares tão variados quanto o videogame Red Dead Redemption 2 e como uma piada visual em um episódio de Bob Esponja. Werner Herzog lançou seu misterioso e romântico remake, “Nosferatu, O Vampiro da Noite”, em 1979, enquanto A Sombra do Vampiro, de E. Elias Merhige, lançado em 2000, imagina a produção do filme se seu ator principal, Max Schreck, fosse realmente um vampiro. Orlok até serviu como uma musa improvável para os designers de moda holandeses Viktor e Rolf, que mostraram uma coleção “Nosferatu chic” pelas passarelas de Paris este ano.

No entanto, embora hoje seja celebrado por sua ingenuidade, os cinéfilos quase não tiveram a chance de assistir a nenhum Nosferatu – por causa de uma disputa sobre o quão novas suas ideias realmente eram.

Nosferatu começa com um jovem casal desavisado. Thomas Hutter deixa sua esposa, Helen, e sua casa em Wisburg, Alemanha, para assinar um contrato de propriedade com Orlok, um misterioso conde que vive em um castelo nas montanhas da Transilvânia. Orlok é excêntrico, depois sinistro. Ele recusa comida. Ele dorme de dia, em um caixão, em cima de uma pilha de outros caixões. Quando Hutter acidentalmente corta o dedo, Orlok tenta sugar o sangue de sua mão. A gota d'água é quando Orlok vê uma foto da esposa de Hutter; elogiando o “lindo pescoço” de Helen, ele parte de barco para Wisburg para persegui-la e se banquetear com o sangue das pessoas da cidade.

Se esse enredo soa familiar, é porque é quase idêntico ao do romance Drácula, de Bram Stoker, com algumas pequenas alterações. Quando a viúva de Stoker, Florence, soube do filme, ela tentou um processo, apenas para descobrir que a produtora de “Nosferatu”, a Prana-Film, não tinha mais dinheiro. (A Prana-Film gastou muito na promoção do filme – mais do que nas filmagens em si.) Depois de três anos no tribunal, um juiz de Berlim decidiu que todas as cópias do filme deveriam ser destruídas.

A ordem foi seguida na Alemanha, mas as cópias de Nosferatu já haviam chegado aos Estados Unidos, onde Drácula era de domínio público. Murnau morreu em um acidente de carro em 1931, aos 42 anos, e não viveu para ver seu filme se tornar um clássico cult, com a reputação do filme crescendo na década de 1960, quando os direitos autorais de “Drácula” expiraram mundialmente e Nosferatu pôde ser exibido em todos os lugares.

Publicidade

“Com filmes da era do cinema mudo, muitas vezes é difícil encontrar até mesmo algumas fotos ou recortes de jornal”, disse Jon Robertson, produtor da Eureka Entertainment, a distribuidora que leva “Nosferatu” aos cinemas na Grã-Bretanha e na Irlanda este ano. “Na época, as pessoas viam os filmes como dispensáveis. Era como a TV aberta é agora; eles apenas faziam os filmes e, se ninguém quisesse assisti-los depois de alguns meses, eles os jogavam fora.” A versão do filme que está sendo exibida este ano foi restaurada por Luciano Berriatúa, diretor de cinema e historiadorque o montou a partir de cópias sobreviventes e reparou o filme quadro a quadro, usando ferramentas de limpeza de fotos e automação para remover tremores e arranhões.

“O filme antigo foi impresso em nitrato”, disse Robertson. “Tem um brilho estranho e cintilante que não pode ser replicado, graças à forma com a qual os produtos químicos reagem quando a luz os atinge. Isso aumenta a beleza de Nosferatu.”

Enquanto o filme colocava Murnau no caminho de uma carreira como autor de Hollywood, seu produtor, Albin Grau, também desempenhou um papel essencial na criação da forte identidade visual de “Nosferatu”. Arquiteto treinado e ocultista praticante, Grau foi responsável pelos esboços do storyboard e pelo figurino de Orlok, incluindo dentes postiços, orelhas e garras, juntamente com o distintivo sobretudo preto. Partindo de representações de Drácula como um sofisticado urbano, Schreck, o ator, deu vida a um novo arquétipo: o vampiro como um forasteiro, incorporando medos de contágio e morte.

Enquanto outros filmes expressionistas alemães da época, como O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, fizeram uso de cenários internos altamente estilizados, grande parte de Nosferatu foi filmada ao ar livre, com tomadas inspiradas nas pinturas litorâneas de Caspar David Friedrich. O filme inspirou-se em vários artistas; notas manuscritas no roteiro referem-se a obras do romantismo alemão, enquanto as cenografias de Grau ecoam a arte de Francisco de Goya, Alfred Kubin e Franz Sedlacek, e as ilustrações de Hugo Steiner-Prog para o filme mudo Der Golem.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Uma exposição na Nationalgalerie em Berlim, Phantoms of the Night: 100 Years of Nosferatu (Fantasma da Noite: 100 Anos de Nosferatu), prevista para dezembro, reunirá obras que inspiraram o filme e que o filme inspirou por sua vez, incluindo cartazes desenhados por Grau.

Frank Schmidt, um dos curadores da exposição, disse que, logo após seu lançamento, Nosferatu começou a inspirar artistas – na França, em particular. “Os surrealistas descobriram o filme por si mesmos”, disse Schmidt. “André Breton nomeou como cena chave o intertítulo que comenta a passagem de Hutter para o reino dos espíritos.”

Referenciada no livro de Breton Surrealismo e Pintura de 1928 e em Os Vasos Comunicantes, de 1932, o trecho em questão – “E quando ele cruzou a ponte, os fantasmas vieram ao seu encontro” – aparece na parte final da viagem de Hutter para o castelo de Orlok. É uma passagem de limiar feita por um humano em vez de um vampiro, sinalizando uma mudança narrativa da realidade para um mundo de pesadelos.

Publicidade

A música é outra parte da vida após a morte de Nosferatu. Há muito tempo é exibida em casas de shows e boates, e também em cinemas, com a trilha original do compositor alemão Hans Erdmann remixada, reinterpretada ou substituída. O compositor de trilhas sonoras James Barnard criou uma nova trilha sinfônica em 1995, e o DJ Shed, de Berlim, lançou uma trilha sonora techno de Nosferatu na boate Berghain em 2013.

Em maio, Jozef van Wissem, compositor holandês e tocador de alaúde de vanguarda conhecido por suas colaborações com o diretor de cinema Jim Jarmusch, apresentará uma trilha sonora ao vivo em uma exibição de Nosferatu em uma grande igreja em Belfast, Irlanda do Norte. Começando com um solo tocado no alaúde, sua performance incorporará guitarra elétrica e gravações distorcidas de pássaros extintos, passando da sutileza ao horror gótico. “Minha trilha sonora vai do silêncio ao barulho ao longo de 90 minutos”, ele disse, culminando em “death metal denso e lento”.

Em altaCultura
Loading...Loading...
Loading...Loading...
Loading...Loading...

O próprio Orlok também foi remixado e reinterpretado, com um exército de vilões igualmente pálidos, carecas e sugadores de sangue aparecendo em séries de TV e filmes. Simon Bacon, um estudioso de Poznan, Polônia, é o editor de um novo livro, Nosferatu in the 21st Century (Nosferatu no Século 21). A ser publicado em agosto, ele traçará o legado em evolução de Nosferatu desde o ano 2000.

“Começa analisando as adaptações cinematográficas, com exemplos artísticos, de ficção científica e comédia”, disse Bacon, listando o Mestre em Buffy, a Caça-Vampiros, o Anjo em Missa da Meia-Noite da Netflix e Petyr, o vampiro mais velho na série de comédia What We Do In the Shadows (O que fazemos nas sombras), entre os descendentes de Orlok.

Bacon disse que seu livro continua discutindo “as maneiras pelas quais o filme pode ser lido em termos de ansiedades em torno de contágio e doença mental e termina observando como diferentes mídias desenvolveram a história – música, jogos, técnicas de filmagem e até performances. ”

Um desenvolvimento de Nosferatu há muito tem sido especulado, mas ainda não aconteceu: Robert Eggers, diretor dos filmes A Bruxa, O Farol e O Homem do Norte, foi associado a um remake. Seus planos foram anunciados pela primeira vez em 2015, mas fracassaram e foram anunciados novamente várias vezes.

Em uma entrevista, Eggers disse que ainda queria refazer o filme, mas não sabia dizer quando entraria em produção. “Seria uma pena se isso nunca acontecesse, porque dediquei tanto tempo a isso”, ele disse, “e cheguei perto mais de uma vez”.

Publicidade

Eggers descobriu Nosferatu pela primeira vez enquanto estava na escola primária na zona rural de New Hampshire, ele disse. Lembrou-se de pedir aos pais que o levassem a um shopping para encomendar o filme em VHS, depois esperou um mês pela chegada de um vídeo granulado. Embora não tenha a clareza de uma edição remasterizada, a gravação de baixa qualidade tornou a performance de Schreck como Orlok ainda mais sinistra, disse Eggers.

“As versões em vídeo deram origem a essa ideia de que Max Schreck era um vampiro de verdade”, ele disse, “mas nas versões restauradas, você pode ver a careca falsa e a maquiagem”.

Se seu Nosferatu for feito, Eggers disse que gostaria de explorar os elementos definidores de sua história. “Há certas coisas que o diferenciam de Drácula, que você pode identificar com ‘Nosferatu’ e não apenas com O Vampiro de Robert Eggers”, ele disse.

Uma releitura, então, que se baseia em um século de folclore e história do cinema. “Minha abordagem é sempre entender o período em que o filme e a história se passam e fazer isso com o máximo de verossimilhança possível”, disse Eggers.

“Então, o que significa ser um conde morto-vivo, vivendo nos Cárpatos? Essa é a minha entrada.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.