29 de setembro de 2021 | 17h04
Já houve ciclos se encerrando na saga de James Bond, a cada vez que um ator se apropriava do personagem criado pelo escritor Ian Fleming. Sean Connery, George Lazenby (uma vez), Roger Moore, Timothy Dalton e Pierce Brosnan revezeram-se no papel e, com maior ou menor sucesso, imprimiram sua marca. O 25º filme da saga oficial chega agora para encerrar mais um ciclo, o de Daniel Craig. É mera coincidência que, nos cinemas brasileiros, 007 - Sem Tempo para Morrer faça sua estreia nas salas juntamente com um filme alemão chamado Meu Fim, Seu Começo. Sem grande risco de spoiler, pode-se dizer que o título caberia no novo 007.
Novo? Na eletrizante cena inicial, James Bond/Craig chega a uma cidade medieval italiana em companhia de Madeleine Swann/Léa Seydoux. O diálogo ambíguo é sob medida para mostrar que o passado nunca desaparece na vida das pessoas. Nesse momento específico, as pessoas, na cidade, estão queimando suas memórias.
Madeleine escreve num papel Masked Man - uma cena anterior mostrou como a mãe dela morreu e quem diabos era esse homem mascarado. O próprio James visita o túmulo de Vesper/Eva Green e também escreve num papel, Forgive me, perdão. Uma explosão e a caçada recomeça. James, a casta diva da Inteligência britânica, tem de lutar pela vida. Foi traído por Madeleine?
Passaram-se cinco anos, e a caçada recomeça. Entre o filme anterior da série, o 24º - 007 Contra Spectre -, passaram-se realmente cinco anos, quer dizer, seis, porque a pandemia impediu que Sem Tempo para Morrer chegasse aos cinemas no ano passado, como previsto. Nesse meio tempo, as especulações foram imensas. Daniel Craig anunciou sua aposentadoria e começaram a pipocar os apelos dos fãs. Por que não um 007 negro? E o nome de Idris Elba tornou-se cotado. Na era da Mulher Maravilha, por que não uma 007 feminina? Prepare-se para muitas surpresas. James aposentou-se, e há, sim alguém com o mesmo número, e com permissão para matar. Acontece que a aposentadoria não é para valer, e 007 volta à ativa.
É um filme de despedidas - alguns personagens que se tornaram chaves na era Craig do papel estão desaparecendo. Blofeld/Christopher Waltz agora está preso e surge o novo vilão, interpretado por Rami Malek. O vencedor do Oscar por Bohemian Rhapsody pelo visto não precisou interpretar naquele filme. Ele não tem feito outra coisa, depois, senão repetir as caras e bocas. Muito importante, é tanta coisa mudando em Sem Tempo para Morrer que era preciso um novo diretor. Cary Fukugana dá conta do recado. O filme é tudo que você espera, e mais.
Roteirista, produtor e diretor de TV e cinema - Cary Joji Fukunaga tornou-se conhecido por Beasts of No Nation. A adaptação do romance do nigeriano Uzodinma Iweala lhe valeu um prêmio no Festival de Veneza de 2015. Quem viu o filme sabe que é bastante doloroso - quanto custa o esforço humano na guerra? Idris Elba era excepcional no papel do Comandante. Talvez não seja mera coincidência que, em meio a intensos boatos de que Daniel Craig estava se despedindo e Elba poderia ser o novo James Bond - o 007 negro -, o ator tenha sido descartado, mas Fukunaga tenha sido escolhido para dirigir o 25º filme da série.
007 Sem Tempo para Morrer está encerrando mais um ciclo do personagem na tela. Vale lembrar que, em 2006 - há 15 anos -, quando Daniel Craig assumiu o papel, o ciclo do espião com licença para matar do escritor britânico Ian Fleming parecia esgotado. Mais do mesmo. Craig aceitou o desafio da produtora Barbara Broccoli de que seria um Mr. Bond mais complexo que suas versões anteriores. Martin Campbell dirigiu Cassino Royale, que registrou a maior bilheteria isolada de um filme com 007. A morte de Vesper Lynd/Eva Green já anunciava um tom mais sombrio.
Graças a Craig, diretores autorais passaram a frequentar a série. Marc Foster, Sam Mendes. O segundo dirigiu 007 Operação Skyfall, cuja bilheteria ultrapassou a barreira do US$ 1 bilhão, e 007 Contra Spectre, que quase chegou lá, US$ 880 milhões. Fukunaga entrou na série já com a encomenda de encerrar o ciclo de Daniel Craig. Não é spoiler. Será o último filme dele. Foi formatado para isso, a surpresa é o que ocorre (e ocorre muita coisa). Neal Purvis, Robert Wade e Phoebe Waller-Bridge escreveram o roteiro que entrega muita ação, claro, mas também humor - 007 chega a chamar M/Ralph Fiennes de darling -, drama, páthos, romance. Nesse sentido, talvez seja o filme mais completo de toda a série.
No centro da trama está a questão da paternidade, que atinge os personagens de Madeleine e Rami. Ela carrega o estigma de ser a filha de Blofeld, ele desencadeia toda a ação porque quer se vingar do homem - Blofeld - que matou toda a sua família. Como nos grandes westerns de Budd Boetticher, nos anos 1950, o mocinho e o vilão são as duas faces da mesma moeda. A mais notável das coincidências. A narrativa decola na cidade medieval italiana em que Bond e Madeleine chegam aparentemente em férias, mas terminam no centro de uma caçada humana que terminará por separá-los. Essa cidade é muito especial. Matera, onde Pier-Paolo Pasolini filmou O Evangelho Segundo Mateus e Mel Gibson, A Paixão de Cristo. Matera foi recentemente - em 2019 - o cenário do excepcional O Novo Testamento, em que Milo Rau encenou a Paixão de Cristo com refugiados.
Cuidado com os spoilers - saiba apenas que complexas relações familiares compõem os fantasmas do passado. Tem até uma menina, e ela é a chave para a vertente mais dramática que leva 007 a fazer as escolhas possivelmente mais íntimas de sua carreira de herói. Há quase 50 anos, em O Satânico Dr. No, de 1962, a ação resolvia-se numa ilha que era também laboratório. De volta ao começo. À ilha de Rami Malek e ao jardim venenoso de seu pai cientista. Emoção é o que não falta nessa despedida.
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