Zurique restaura os locais por onde passaram os artistas dadaístas

Em comemoração por um século do movimento Dada, cidade dá recado aos grupos políticos atuais que rejeitam os refugiados

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Por Jamil Chade/CORRESPONDENTE e ZURIQUE
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«Gadji beri bimba glandridi ». Em 1916, na cidade velha de Zurique, Hugo Ball subiria em um pequeno palco para declamar um poema fonético. O êxtase místico denunciava o mundo sob a Primeira Guerra Mundial e contaminou a plateia do pequeno Cabaret Voltaire. Estava começando o movimento artístico Dada, subversivo e anti-burguês, alimentado pelo absurdo da guerra e por artistas refugiados. 

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Zurique havia se transformado em um porto seguro para dezenas de exilados de toda a Europa que, diante de mais de 3 milhões de mortos apenas nos dois primeiros anos da Guerra, haviam encontrado refúgio na Suíça neutra.  Cem anos depois, a cidade de Zurique recria a vida desse movimento, numa homenagem a artistas que desafiaram o nacionalismo europeu. Mas também num recado que hoje ecoa com uma força incômoda num continente desafiado pela imigração, com governos que fecham suas fronteiras e ondas de xenofobia contra estrangeiros. 

Durante o ano de 2016, exposições, conferências e debates serão organizados na cidade, num paradoxo que não deixou de chamar a atenção: o movimento anti-instituição é agora recuperado e promovido pela própria elite cultural do governo suíço. “Isso cria evidentemente uma certa tensão”, admitiu Stefan Zweifel, um dos comissários das exposições. 

Se uma mostra no Museu Nacional até o final deste mês é considerada como o principal evento do ano, com 150 objetos e fruto de seis anos de pesquisas, é nas ruas e locais por onde passaram os dadaístas que as comemorações ganham vida.  A primeira etapa obrigatória do tour é a imponente estação central de trem de Zurique. A partir de 1915, uma leva de refugiados começou a desembarcar no local, fugindo da guerra na Alemanha, Áustria ou Romênia. Muitos eram trabalhadores, intelectuais, cientistas, poetas e artistas. Todos, como no caso da crise de refugiados de hoje, buscando sobreviver. 

Entre esses exilados estavam os artistas alemães Emmy Hennings e seu marido, Hugo Ball. Pela mesma estação passaram Tristan Tzara, Marcel Janco, Hans Arp e Richard Huelsenbeck. Por meses, esses artistas tentaram ganhar a vida cantando em cabarés, mudando de casa com frequência diante da falta de dinheiro. “Era uma vida muito precária”, observa a historiadora Catherine Hug e curadora do Kunsthaus de Zurique. 

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Para tentar sair da instabilidade, Ball convenceu um bar no centro da cidade a emprestar a ele um salão. A promessa era de que aumentaria a venda de cervejas com noites regadas a música. O local ganhou o nome de Cabaret Voltaire, uma tentativa de evitar uma germanização excessiva do local. Historiadores contam que o cabaré não começou imediatamente com seu tom revolucionário. Ball precisava se manter e, com sua mulher como a cantora e estrela do local, competia com outros cabarés da rua. 

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Mas, gradativamente, o tom subversivo ganhou vida, principalmente com o retorno de jovens que haviam estado na guerra e o cinismo diante da versão oficial dos governos sobre a defesa dos países. A 50 metros dali, vivia ainda Lenin, outro exilado e que, de seu apartamento na mesma rua, planejava a revolução russa. Não existem registros, porém, se Lenin frequentou o bar.  O Cabaret, hoje restaurado e que faz parte do tour, sobreviveu por apenas cinco meses. Em junho de 1916, fechou suas portas. Um dos motivos foi a falta de capacidade dos intelectuais em fechar as contas a cada noite. O local e berço do movimento, na rua Spiegelgasse, passou décadas esquecido. 

Mas, em 2001, quando o prédio foi comprado por uma seguradora, jovens ativistas iniciaram uma batalha para recuperar o Cabaret. Uma ocupação do local reacendeu os espíritos e, numa votação popular em 2008, os cidadãos de Zurique disseram “sim” para que a prefeitura destinasse dinheiro público ao cabaré.Hoje, o lugar que foi subversivo tem seu aluguel e manutenção pagos pelo estado, num valor de US$ 500 mil por ano. A cidade se justifica: “O movimento Dada é a herança cultural de Zurique mais importante do ponto de vista internacional desde a Reforma na Igreja”. 

Se o Voltaire fechou em junho de 1916, o movimento continuou por Zurique. Na Zunfthaus zur Waag foi realizado o primeiro evento Dada naquele ano fora do Cabaret. Já o Café Terrasse passou a ser o local preferido dos artistas para saber as últimas notícias da guerra. Mas, depois que optaram por apoiar uma greve dos garçons do local, foram obrigados a se mudar para o Café Odeon. O tour termina na imponente Saal zur Kaufleuten. Foi ali que, em 9 de abril de 1919, o movimento deu adeus a Zurique, em sua última noite de eventos. “1,5 mil pessoas, que haviam atingido um estado de ebulição, lotavam o auditório”, escreveu Tristan Tzara sobre aquela despedida. Com o fim da guerra, muitos dos artistas voltaram a seus locais de origem, enquanto outros levaram o movimento para Paris, Berlim e Nova Iorque. 

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