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Volta do musical visionário de Coppola provoca revisão

O Fundo do Coração foi o primeiro a usar edição eletrônica

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Filme que inaugurou a edição digital no cinema, o musical O Fundo do Coração (1982), de Francis Ford Coppola, foi um tremendo fracasso em sua estreia, levando à falência a Zoetrope, produtora do diretor (foram investidos US$ 25 milhões na produção contra uma minguada bilheteria que não chegou a arrecadar R$ 700 mil). A crítica teve o seu papel nesse fiasco. Há 27 anos, quando o filme foi lançado, os analistas pareciam pouco propensos a aceitar as inovações tecnológicas de Coppola, como se a reconstrução de Las Vegas em estúdio fosse apenas um delírio megalomaníaco do realizador. Hoje saudado como obra-prima, O Fundo do Coração volta em DVD para uma justa e menos apaixonada avaliação. Com o sucesso de Moulin Rouge, de Baz Luhrmann, críticos têm apontado o filme de Coppola como um precursor do musical pós-surrealista - caracterizado por enredos evanescentes, efeitos especiais em profusão, cores lisérgicas e cenários deliberadamente artificiais. O musical tem tudo isso e mais: além de associar a artificialidade dos cenários aos relacionamentos construídos conforme a conveniência social, Coppola contou com colaboradores geniais para traduzir essa incômoda realidade. Das letras amargas das canções da dupla Tom Waits/Crystal Gayle às metafóricas paredes que desabam nos cenários de Dean Tavoularis, passando pelas cores saturadas da fotografia de Vittorio Storaro, o musical é uma requintada demolição do gênero que Hollywood consagrou. Em O Fundo do Coração, ninguém está contente com sua condição. A festa de aniversário do quinto ano de casamento de Hank (Frederic Forrest) e Frannie (Teri Garr) não tem bolo nem velas, mas um gosto amargo de fim. A rigor, não há nada a comemorar num casamento frustrado em que ambos estão em busca de novas sensações. Hank encontra na delicada acrobata Leila (Nastassia Kinski) uma possível saída para sua vida cinzenta. Sua mulher Frannie, uma romântica incurável, ganha como parceiro o terno garçom Ray (Raul Julia). E, mais uma vez, Coppola dá seu toque de mestre, invertendo a equação hollywoodiana: se o tecnicolor funcionou como técnica escapista para a classe média nos anos 1950, as cores psicodélicas herdadas da arte pop - mais particularmente, de Andy Warhol - deveriam conquistar casais disfuncionais nos anos 1980. Afinal, a uniformização cromática provocada pela saturação era apenas uma metáfora da superação do tédio provocado por relações amorosas artificiais - o quarteto vê o mundo como um cenário idealizado em seus sonhos. É claro que tanto simbolismo acabou prejudicando Coppola, preso num labirinto de alegorias que vão desde paredes que separam amantes - dissolvidas por truques eletrônicos - até uma Las Vegas que se transforma em cenário fantasmático - mais irreal que seu modelo real. Não se trata, mais uma vez, de nostalgia dos antigos musicais de estúdio, mas de uma renovação do gênero - até mesmo porque ninguém convidaria Tom Waits para compor canções escapistas. O Fundo do Coração, duas décadas depois, parece um filme além do seu tempo, obra maior de um visionário.

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