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Volpone, o brilho de Ben Jonson por Mankiewicz

Charada em Veneza, com Rex Harrison, é uma farsa corrosiva que o grande cineasta adaptou da obra-prima do consagrado autor elizabetano

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Cherchez la femme - procurem a mulher, adverte o franco-vietnamita N.T. Binh em seu livro sobre Joseph L. Mankiewicz. Sua advertência liga-se a uma constatação que pode ser feita sobre o cinema do grande Joseph, após Cleópatra. Vale ser lembrada agora que Charada em Veneza está disponível em DVD. Depois de incursionar pela obra de Shakespeare - em Júlio César e, por que não?, Cleópatra, com seus diálogos shakespearianos -, Mankiewicz voltou-se aqui para outro nome ilustre do teatro elizabetano, Ben Jonson. Charada em Veneza pega carona na farsa que Jonson intitulou Volpone e que especialistas como Otto Maria Carpeaux consideram superior ao próprio Shakespeare, dizendo que o mais renascentista dos poetas elizabetanos aqui superou seu mestre. Charada em Veneza é o que se chama de comédia criminal. Trata deste milionário que, como na peça, se finge de moribundo para atrair à sua casa, com a cumplicidade do secretário, três antigas amantes. Uma delas é uma milionária texana que é assassinada e isso desencadeia o relato em tom de farsa - como na peça de Jonson. Personagens corruptos, miséria humana, ridículo, decadência moral da civilização. Todo Ben Jonson é destilado pelo diálogo ferino, que Mankiewicz coloca na boca de atores como Rex Harrison, seu cúmplice em outras aventuras, Cliff Robertson, Susan Hayward e Maggie Smith. Neste sentido, inclusive, Charada em Veneza é perfeito para ilustrar por que Mankiewicz era chamado de cineasta da palavra - sua mise-en-scène fundamenta-se no dinamismo dos diálogos e isso não tem nada a ver com teatro filmado, por mais que ele fosse atraído por peças e pelos bastidores da cena teatrais. A história ficou famosa. Quando Mankiewicz se referia ''àquele filme'', seus interlocutores já sabiam que ele estava falando de Cleópatra. A experiência de fazer o épico com Elizabeth Taylor foi tão traumatizante para o cineasta - que administrava a pressão do estúdio pelo estouro de orçamento, o sensacionalismo da imprensa pelo affair Liz-Richard Burton e o próprio desejo de permanecer autor - que ele gostaria de ter apagado Cleópatra da sua filmografia (e da consciência). Seria absurdo, porque o espectador, que não vivenciou os problemas do artista, tem mais discernimento para avaliar a excelência do filme - mais ''intelectual'' do que a recente Cleópatra de Júlio Bressane, mas esta seria outra história a ser debatida. Mankiewicz fez apenas outros três filmes - Charada em Veneza, Ninho de Cobras e Jogo Mortal (Sleuth) - até sua morte, em 1993. A partir do primeiro, a figura da mulher vai se apagando, como se Mankiewicz, grande criador de personagens femininas, tivesse se cansado delas. Nada a ver com misoginia. O ato, em si, revela mais uma misantropia que não é estranha àquela que Federico Fellini revelou em seu Casanova. Aliás, tanto Casanova de Fellini quanto Charada em Veneza passam-se na cidade dos canais e das gôndolas, que um e outro mostram fantasmagórica ou suntuosa - a fotografia do filme de Mankiewicz foi a última assinada por Gianni di Venanzo, um dos maiores fotógrafos do mundo, que morreu de hepatite durante a produção. Já que está no título, a verdadeira charada do filme é justamente esse papel da mulher, como se o autor estivesse querendo exorcizar a experiência de Cleópatra. Não adianta procurar. A mulher desaparece - e não apenas Ninho de Cobras é um western gay (precursor de O Segredo de Brokeback Mountain?) como Jogo Mortal é um duelo verbal entre homens no qual ela é somente uma pista falsa. Imagem, elenco, tudo reluz, mas a verdadeira estrela do filme é o diálogo que Jean Tulard, em seu Dicionário de Cinema, define como ''faiscante''. Serviço Charada em Veneza. EUA, 1967, cor, 137 min. Dir.: Joseph Mankiewicz. Classic Line. R$ 39,90

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