Vitória do intérprete

Na ópera e na música clássica, em ano de polêmicas e impasses políticos, o que fica na lembrança são apresentações memoráveis de brasileiros e estrangeiros

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Por João Luiz Sampaio
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Artistas consagrados, outros consolidando seu nome no cenário, jovens talentos deixando de ser promessas e se tornando realidade. Em ano de polêmicas e impasses na área política e de patrocínio (leia abaixo), o ano que se encerra, para a música clássica e a ópera, foi uma lição sobre o valor do trabalho do intérprete - e isso, importante, vale tanto para aqueles vindos de fora (Mathias Goerne, Daniel Barenboim, Helmut Rilling) quanto para os brasileiros (Antonio Meneses, Denise de Freitas). Os concertos de Daniel Barenboim com a Staastkapelle Berlim foram como um furacão na vida musical brasileira. Se não bastasse o Bruckner de primeira linha apresentado na Sala São Paulo (temporada da Cultura Artística), o maestro completou seus programas com peças de Schoenberg e Alban Berg. Foi uma lição. Quase todas em primeira audição brasileira, mostraram ao público que, interpretadas com qualidade, são obras que devem estar mais presentes nos repertórios de nossos teatros - não há segredo, elas e suas mensagens só serão incorporadas pelo público e pelos músicos se estiverem constantemente nos palcos. Pelo Mozarteum, o destaque foi o barítono alemão Mathias Goerne. Aqui, a lógica é outra. Nos últimos anos, a obra de Mahler tem sido presença constante em nossas temporadas. O que se espera, então, é que o intérprete possa nos oferecer olhares novos, frescos, desse repertório. E a articulação entre poesia e música sugerida por Goerne revelou um artista em plena maturidade - nesse sentido, vale registrar também o lançamento do primeiro disco de sua série dedicada a Schubert. Sensucht (Harmonia Mundi) é forte concorrente a disco do ano. Ainda em Mahler, é preciso falar também da contralto francesa Nathalie Stutzman, que abriu o ano da Osesp com a Sinfonia nº 2, Ressurreição. E da meio-soprano brasileira Denise de Freitas. No Festival Amazonas (que teve como destaques o Compositor de Celine Imbert na Ariadne de Strauss e a montagem de Maria Golovin, de Menotti), ela interpretou pela primeira vez a Canção da Terra, regida por Luiz Fernando Malheiro. Meses depois, em Brasília, com Ira Levin, ela repetiu a dose. A riqueza da interpretação dos dois maestros, que fora do eixo Rio-São Paulo têm feito um pouco do que há de melhor na nossa música, por si só, já seria motivo a ser celebrado. Mas o crescimento de Denise na interpretação de uma das obras-chave do repertório, somado ao compositor na Ariadne do Municipal de São Paulo e a sua Dalila, impecável, no mesmo palco, são provas de que todas as expectativas depositadas por maestros e crítica especializada na cantora mostraram-se corretas (justo é ressaltar também a temporada do Municipal como veículo para os cantores brasileiros, com produção consistente de oito títulos ao longo do ano). Nas músicas de concerto e de câmara, o nome do ano foi o do violoncelista Antonio Meneses. Na Folle Journée, iniciativa que foi o destaque da temporada carioca, com mais de 40 concertos em três dias dedicados a Beethoven, Meneses interpretou as sonatas para violoncelo e piano do compositor, ao lado do pianista Menahem Pressler, com quem também lançou um disco com o mesmo repertório (selo Clássicos). O álbum é o ponto alto não apenas de sua parceria com o pianista Menahem Pressler como também da sua trajetória como intérprete, celebrada ainda em uma série de concertos que não exclui jamais a busca por novos repertórios, com carinho especial pelos autores brasileiros. De volta aos destaques internacionais, é raro ouvir por aqui a voz wagneriana por excelência do baixo Alan Titus, o Jochanaan da Salomé da Osesp; o mesmo vale para, no mesmo espetáculo, a experiente soprano Gabrielle Schnaut, apesar das tintas carregadas da orquestra sob o comando de John Neschling. Ainda na Osesp, o Réquiem Alemão de Helmut Rilling ficou na memória. Sua leitura é profundamente humana, não deixa o caráter monumental da peça esconder um só instante a motivação pessoal de um compositor que lembra Deus para discutir os dilemas do homem (aqui, destaque também para o Coro da Osesp, soberbo sob regência de Naomi Munakata). Em Belo Horizonte, o Palácio das Artes se manteve como palco relevante da ópera nacional, com poucos títulos mas uma busca por linguagens modernas de produção. Nesse sentido, a produção de Márcio Aurélio para Pélleas e Mélisande, de Debussy, foi destaque, limpa, calcada na interpretação dos cantores (Rosana Lamosa, Fernando Portari e o sensacional Jean-Philippe Lafont)e na regência sensível e inteligente do maestro Abel Rocha. A música clássica não escapou da enxurrada de lançamentos motivada pelos 200 anos da chegada da Família Real Portuguesa. Está cada vez mais claro que voltar à vida musical daquele momento pode ajudar - e muito - a compreender a criação das bases da vida cultural do País. Bom, fica para a próxima. Das novidades salvam-se apenas o livro A Música na Corte de D. João VI, de André Cardoso (Martins Editora), e o disco Cavaleiro Neukomm: Criador da Música de Câmara no Brasil (Biscoito Fino), que revisita a obra do austríaco Sigismund Neukomm, que chegou ao Brasil com a corte portuguesa e aqui escreveu algumas de suas principais obras (a interpretação é da dupla Rosana Lanzelotte e Ricardo Kanji). Uma nota triste. O ano de 2008 também será lembrado pelo incêndio que destruiu o Teatro Cultura Artística. Do prédio, restou apenas o mural de Di Cavalcanti - que se já o símbolo da permanência e da possibilidade de reconstrução do palco. Vai fazer falta.

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