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Villa pela metade

Cinquenta anos após a morte do maior compositor brasileiro, suas principais[br]peças - sinfonias, óperas e concertos - continuam fora do catálogo das editoras

Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio
Atualização:

É um paradoxo. Cinquenta anos depois de sua morte, o carioca Heitor Villa-Lobos é considerado o maior compositor brasileiro da história. Ao mesmo tempo, porém, nosso conhecimento de sua obra é, no melhor dos casos, entrecortado. Não se trata apenas do pouco espaço reservado a ela nas salas de concertos: sua produção orquestral, incluindo sinfonias, concertos e óperas, continua em manuscritos, sem edições revisadas ou definitivas, dificultando sua execução. Só isso já seria suficiente para esvaziar as homenagens pelos 50 anos de sua morte, em novembro. Mas o quadro é ainda mais dissonante: sem apoio, o projeto da Academia Brasileira de Música de edição da obra do compositor está sem dinheiro. E pode morrer na praia. Villa-Lobos (1887-1959) compôs cerca de mil obras. Escrevia rápido - e não costumava voltar às partituras para fazer revisões. E, para o intérprete, o problema principal acaba sendo trabalhar com esses manuscritos, sobre os quais o tempo já atuou. "É sempre um choque", diz o maestro Ira Levin, ex-diretor do Teatro Municipal de São Paulo, hoje à frente da Sinfônica de Brasília. "Lembro que faltavam partes inteiras do violoncelo na partitura do Trenzinho do Caipira que tínhamos disponíveis. Está tudo à mão e, quando há páginas digitalizadas, são tantos os erros que você precisa gastar um tempo enorme durante os ensaios apenas para clarear a escrita", completa. "Villa-Lobos teve uma produção numerosa. Portanto, seria difícil que estivesse editada em sua totalidade, ou em parte significativa", afirma Jamil Maluf, diretor do Municipal de São Paulo. "Ainda assim, é fundamental que se faça uma revisão minuciosa das edições disponíveis, além de apagar lacunas importantes." Fábio Mechetti, maestro da Filarmônica de Minas Gerais, junta-se ao coro: "Muitas obras dele foram publicadas na França, mas nunca revisadas ou editadas de maneira profissional. Até hoje existe material de certas composições do Villa que as orquestras estrangeiras se negam a tocar por serem ilegíveis. Isso sem contar os inúmeros erros a exigirem correções que atrasam o andamento dos ensaios." No mês passado, em Berlim, o diretor de óperas brasileiro André Heller comandou a execução de trechos de Yerma, baseada em peça de mesmo nome do poeta espanhol Federico García Lorca, a partir dos manuscritos. "Foi uma experiência original, digamos. Há erros de textos e notas na Yerma. Mas o mais complicado é a parte da redução para piano: foi preciso desvendar que notas tocar! A orquestração da Yerma, primorosa, acaba por soar pesada com piano e, como em algumas reduções de óperas de Richard Strauss, é necessário escolher o que tocar de todas aquelas notas." "A presença de uma grande parte das obras em cópias manuscritas desestimula o regente a estudar partituras novas para ele. No campo orquestral, nossa percepção é, sim, entrecortada. Apresentações e gravações ocorrem, mas a utilização desses materiais leva a uma execução tensa e com dificuldades de leitura", explica o maestro e pesquisador Roberto Duarte. "Cada vez mais as grandes e boas orquestras se recusam, e com razão, a tocar com páginas que não estejam em condições boas. Gravei muitas obras com cópias manuscritas. Tive muitos problemas. Uma enorme boa vontade da orquestra ajudou na conclusão dos discos. Além disso, há vários erros nos próprios manuscritos", completa. Essas são apenas algumas de uma lista vistosa de experiências que apontam para a necessidade de novas edições da obra sinfônica de Villa-Lobos. Orquestras como a Osesp, que tem uma editora própria, estão preparando materiais próprios para utilização em suas temporadas. O que falta, no entanto, é um olhar de conjunto, que possa observar a escrita do compositor de maneira mais ampla, decifrando e apontando possibilidades de leituras a partir do original e seus problemas. E, assim, passaria a ser mais completa a própria compreensão do legado de Villa-Lobos. Especialista em Villa, Roberto Duarte está à frente de uma comissão responsável pelo projeto Villa-Lobos Digital, realizado pela Sarau Agência Cultural em parceria com a Academia Brasileira de Música, entidade criada pelo compositor e para a qual ele deixou em testamento os direitos de execução de suas peças. Marisa Gandelman, advogada da ABM, explica o estado legal das edições. "Villa-Lobos contratou a edição de suas obras com várias editoras, em especial a Max Eschig. Ele entendia que a única maneira de divulgar sua obra seria por meio de partituras editadas. Mas acabou passando para as editoras a titularidade das composições", explica. "Não queríamos briga, apenas que a obra de Villa chegasse a uma edição de qualidade. Propomos, então, preparar essas edições e entregá-las às editoras. Em troca, elas se comprometem a nos dar o direito de exploração das edições na América do Sul." Não é o melhor dos mundos. Ira Levin critica os altos preços exigidos pelas editoras para o aluguel das partituras, "maiores que muitas obras internacionais". Já Mechetti fala na volta das obras ao Brasil. "Um grande projeto seria a total repatriação de suas composições, conferidas a algum órgão íntegro, sob a curadoria de um eficiente músico (ou, ainda melhor, músicos) que se comprometeriam em transformar tudo aquilo que existe de Villa-Lobos em materiais de qualidade profissional." De qualquer forma, segundo Duarte, devem ser entregues à ABM até novembro 22 obras - entre elas, os concertos para violão, harpa e gaita, alguns dos Choros e o Momoprecoce. Marisa informa que o projeto completo está orçado em R$ 2 milhões, dos quais foram arrecadados apenas R$ 600 mil. No mais, diz ela, "muitas promessas e elogios para o projeto". E só.

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