Vigor e coragem em dois atos de um grande ator

Sergio Britto traz a São Paulo o espetáculo com dois textos de Beckett que foi consagrado no Rio

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Por Beth Néspoli
Atualização:

A partir de hoje o público paulistano poderá conferir uma atuação já considerada por muitos como um dos pontos altos da carreira de Sergio Britto, a montagem integrada de duas peças curtas do poeta e dramaturgo irlandês Samuel Beckett, A Última Gravação de Krapp e Ato Sem Palavras 1. Não é proeza de pouca monta criar atuações memoráveis às vésperas de completar 86 anos de vida (no dia 29 de junho). De carreira, ele já tem 64 anos - foi iniciada em novembro de 1945, no Teatro Universitário, no Rio, no papel de Benvólio, na famosa montagem de Hamlet que tinha Sérgio Cardoso no papel principal. Assista à entrevista com o ator Na primeira das peças que compõem esse espetáculo que inicia temporada no Sesc Santana, Sergio interpreta um homem que revisa sua vida e cuja morte já lhe bate à porta. Krapp tem o hábito de gravar fitas. A cada dia escolhe uma delas, ao acaso, ouve e depois grava mais uma. No dia flagrado na peça, ele ouve uma gravação feita aos 30 anos e logo após grava o que talvez seja sua última fita. Como já fizera em outros momentos da carreira, ao escolher essa peça, Britto se colocou disponível para se renovar sob a batuta de Isabel Cavalcanti, atriz e pesquisadora carioca , que ele convidou para também se experimentar como diretora. Pois ela aceitou o desafio para valer e o estimulou a fazer de suas vivências a matéria-prima da atuação em Krapp, como ele conta nessa entrevista ao Estado. A julgar pelas imagens, críticas e prêmios da temporada carioca, o trabalho alcançou a densidade desejada. Britto lança-se ainda com coragem no tour de force da segunda peça, que exige vigor físico para expressar com imagens corporais a ideia da submissão do ser humano a um poder invisível. Reconhecido também por atuações em televisão e cinema, mas sobretudo pela carreira teatral (nesse caso, além de ator, também como empresário e diretor de teatro e ópera), Britto pôde muito cedo se considerar um artista bem-sucedido. Mas em vez de se acomodar sob a imagem de medalhão, criou desafios para si próprio ao longo da vida, entre eles, ensaiar nu sob a batuta do argentino Victor Garcia em Autos Sacramentais ou convidar Gerald Thomas para dirigir Quatro Vezes Beckett no prestigiado Teatro dos Quatro. Consagrado no chamado teatrão, termo aqui usado sem nenhuma conotação pejorativa, ao longo de sua vida fez algumas intensas e significativas incursões pelo chamado teatro experimental. Com ousadia e paixão, afinou seus instrumentos e acumulou histórias. Na terça-feira, muito gentilmente, veio até o estúdio da TV Estadão para uma conversa sobre o espetáculo e sua carreira. Leia abaixo a entrevista feita pouco antes. Assim como a pintura saltou do figurativo para a abstração, Beckett, um poeta, mexeu na estrutura da dramaturgia, inovou com palavras e imagens. Mesmo que explore temas reconhecíveis como a morte, limitações do corpo, solidão, a forma ainda faz dele um autor difícil? A linguagem dele é extraordinária! Há uma ligação clara com Ulisses, do Joyce, especialmente em A Última Gravação de Krapp. Esse homem escuta uma gravação feita há 30 anos e manifesta ódio pelo idiota que ele era, ao mandar embora a mulher que o amava. É tudo muito compreensível e humano. Mas Beckett não facilita. O personagem diz: "Acabo de ouvir esse coitado desse cretino que eu era aos 30 anos. Difícil acreditar que eu tenha sido babaca a esse ponto. Mas isso acabou graças a Deus. Os olhos que ela tinha." Ele passa a falar da mulher, sem transição. A ligação existe, mas Beckett não explica. A literatura dele fala da realidade, mas não é nada realista. Tem a síntese da poesia? Quem tem capacidade de acompanhar boa literatura entende tudo. Ele diz: "Os olhos que ela tinha. Estava ali toda a carniça do planeta. Toda a luz, escuridão, a fome, a comilança dos séculos. E pensar que ele deixou isso escapar..." Beckett não faz mistério, mas seu texto tem uma qualidade poética excepcional. Então nós chegamos à terrível conclusão: o problema é a dificuldade de acompanhar a grande literatura. Um problema de educação no País? Sim. Porém, estranhamente, acho que a recepção de Beckett melhorou no Brasil. Eu vejo isso comparando o público da década de 40, 80, e o atual. Nesse espetáculo, o espectador se emociona, ri, chora. E vai muita gente jovem. Fiz duas temporadas no Rio, uma delas no Teatro Ginástico, que é imenso, e lotou. Engraçado, acho que ele vai virar autor de grande público no Brasil. Mas será que isso não é fruto de um ?fenômeno Sergio Britto?? E não me refiro ?só? à qualidade da atuação. Krapp, o personagem, é um homem que viveu muito, olha para trás e revê sua vida. E como o título sugere, faz sua última gravação. No palco está o Sergio Britto, com sua longa história teatral, fazendo a peça às vésperas dos 86 anos, informações das quais o brasileiro compartilha. Isso não dá uma espécie de ?sobressentido?, outra densidade ao espetáculo? Lógico que sim. Não tenho dúvida. Quando estávamos ensaiando, a Isabel dizia: "Você é o Krapp; tem a idade, a experiência e a vivência para ser o Krapp. Está tudo aí. Não precisa representar." Mas o processo foi difícil. Ela falava o tempo todo: "Não representa, não sofre, não franze a testa, não mexe a boca, não levanta a sobrancelha." Ela me perseguia o tempo todo, era insuportável. "Abaixa o nariz, ouve e pensa na mulher que você chutou e pensa na sua mãe. Não representa." Ela queria que viesse à tona a sua experiência de vida ao escutar a fita? Ela queria que eu lembrasse de alguém que desprezei. Nunca fiz isso, eu afirmei. Aos poucos lembrei de dez casos, entre eles o de uma pessoa que eu chutei e anos mais tarde morreu de câncer segurando minha mão. Como na peça. Agora, eu não me xingo de cretino como faz Krapp. Quando fiz o monólogo sobre Jung aprendi a lidar com o que ele chama nossas sombras. Os nossos defeitos, as nossas culpas são sombras que nos perseguem. Geralmente as empurramos para os outros, eles têm culpa, nós não, eu não. Com a idade aprendi a reconhecer os erros que cometi, sem me torturar. Relutei no processo de trabalho, porque minha tendência era fazer composição, voz rouca, atuar, mostrar sentimentos do personagem. Isabel dizia: "Você tem tudo isso dentro de você; apenas sinta e tudo vai aparecer." A Isabel Cavalcanti é atriz com quase nenhuma experiência em direção e você um ator consagrado. Tal relação leva a pensar que você comandou o processo. Não foi assim? Olha, em 64 anos de carreira nunca tive críticas mais bonitas do que as recebidas por esse trabalho. Bárbara Heliodora disse que era atuação memorável, para nunca esquecer. Mas ninguém deu o devido valor para a Isabel. Eu fiquei frustrado. Ela nem ao menos foi indicada a prêmio. Merecia. Ato Sem Palavras fala da morte em vida, pela desumanização? O personagem vira um bicho sob o sol. Ele tenta escapar, mas é empurrado de volta. Depois de algumas tentativas, desiste, não vai mais. Ele luta, luta, e desanima. O público ri no início, mas depois fica quieto. Você acha que a humanidade viveu esse movimento, desistiu de mudar o mundo? Hoje cada um cuida de si, de sua sobrevivência e ponto? Essa crença que a gente tinha de salvar ou mudar o mundo já acabou. E não é que eu tenha procurado o Beckett para dizer isso. Sempre perguntam como e por que eu escolho um texto. Não tem muita elaboração, talvez uma vontade de dizer certas coisas. Olha aí: pode ser que eu tenha escolhido por isso. No Beckett, vou encontrar a negação. Não tem saída. Agora o Krapp só tem álcool, banana e negação. Eu tenho o Beckett. Beckett faz a gente olhar para esse homem para que a gente não se submeta como ele, não? É... Agora quem empurra esse homem para não sair dali eu acho que é Deus. Ele é empurrado nos bastidores, não se vê. Ninguém nunca me pergunta quem empurra e eu acho essa pergunta importante. Para você é Deus? Você acha que Beckett lidava com a ideia de Deus? Ele eu não sei, talvez um outro poder. Mas eu não sou ateu, porque não sou burro. Não sou de religião nenhuma. Mas alguma energia existe, o que é, quem é, não sei. Você acredita em outra vida, pensa na morte? Eu não penso em morte. Ela não me assusta, mesmo quando vejo gente morrer. Ano passado morreram Ida Gomes, Fábio Sabag, Renato Consorte, Fernando Barbosa Lima... Agora foi o Boal. Gente com menos idade que eu. E eu tenho uma anemia crônica, perigosa, não tem cura, mas me trato. Faço sempre terapia de corpo, estou musculoso por conta da segunda peça que é toda física. De vez em quando alguém vem no camarim e elogia minhas pernas. Ser chamado de sensual na minha idade é muito bom. E as falhas da memória, algo que sempre assusta o ator? Digo que a memória é igual poeira, a de baixo já assentou, mas do meio para cima está sempre voando, um inferno. Eu cuido muito da memória da peça. Repasso o texto todos os dias na hora de dormir e acordar. Acordo, leio o jornal, tomo café, deito, repasso o texto e durmo mais. É o meu ritual quando estou com peça em cartaz. A diretora RIGOR: Atriz e pesquisadora, autora do livro Eu Que Estou Aí Onde Estou, o Teatro de Samuel Beckett (7Letras), Isabel Cavalcanti faz sua primeira grande direção neste espetáculo. Antes, só dirigira criações no âmbito da universidade. O convite foi feito ?ao vivo? num programa de entrevistas que Sergio Britto mantém há dez anos na TV Educativa, Arte com Sergio. "Ele convidou de supetão, aceitei achando que era brincadeira. No dia seguinte, ligou: falara sério." Antes mesmo de saber quanto Isabel conhecia a obra de Beckett, Britto se encantara com a atriz ao vê-la no papel de Clov, em Fim de Partida, no Rio. Se da parte dele o convite era sério, ela, por sua vez, trabalhou para valer. "Não dirigi o grande ator, no sentido da reverência, mas o intérprete com muita experiência e desejo real de dialogar. Fui chata. Muito. E ele, incrível. É muito bonito ver um homem na sua idade, com tanta experiência acumulada, ainda tão apaixonado pelo teatro. E ele vê peças, lê livros, vai ao cinema. Por isso, está sempre se renovando. Crescemos com esse trabalho, nós dois."

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