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Viagem ao lugar que não existe mais

Daniel Mendelsohn mistura gêneros literários em relato sobre busca das histórias de parentes que pereceram no Holocausto

Por Luis S. Krausz
Atualização:

Os descendentes de judeus da Europa Oriental, nascidos nas décadas de 1950 e 1960, nas Américas, em Israel, na Oceania ou na Europa Ocidental, acostumaram-se, desde cedo, à ideia de que seus pais e avós vinham de "lugares que não existem mais". Essa maneira de referir-se a cidades, paisagens arquitetônicas e sociedades humanas desaparecidas destinava-se a encobrir os dramas daqueles que deixaram a tempo suas terras de nascença; a devastação praticada pelos nazistas e seus colaboradores, e os sofrimentos dos poucos que conseguiram escapar com vida ao genocídio. E destinava-se a não impor sobre as gerações mais novas o fardo de uma grande tragédia coletiva. Falar desses "lugares que não existem mais" era uma espécie de tabu. E as próprias localidades - que afinal continuavam a existir, pois se foi possível arrancar um pedaço da história da Europa, o mesmo não pôde ser feito com sua geografia - ficaram, por décadas a fio, inacessíveis aos ocidentais. Do outro lado da "cortina de ferro", estavam isoladas por barreiras burocráticas, políticas e econômicas. Viagens a localidades remotas no interior do que era então a União Soviética e sua esfera de influência eram praticamente impossíveis até o fim dos anos 80. Com a glasnost e a derrocada soviética, porém, esse cenário se transformou, de forma totalmente inesperada. Já nos anos 90 começou a florescer um veio estranho e algo macabro de turismo, que leva judeus do Ocidente em busca dos rastros de seus antepassados aniquilados. Grupos cada vez maiores de visitantes começaram a chegar às cidades e aldeias onde os judeus de língua iídiche tinham vivido por séculos ou milênios, em Estados independentes recém-criados, como Belarus, Moldávia e Ucrânia. Assim, de um momento para outro, resquícios dos "lugares que não existem mais" começaram a ressurgir - em parte, inclusive, para corroborar, de certa forma, as palavras daqueles que, décadas antes, tinham afirmado que não mais existiam: as casas e sinagogas tinham sido bombardeadas e arrasadas a ponto de não deixarem rastros, assim como seus moradores, que foram transformados em cinzas. Mas em meio a essa paisagem de desolação surgiam, como não poderia deixar de ser, vestígios que, por sua vez, ensejaram a publicação de livros, a realização de filmes, a criação de agências de viagens especializadas. Uma espécie de arqueologia moderna, com todos seus desdobramentos literários, históricos e artísticos e, no limite, uma nova mitologia, pouco a pouco passou a habitar aqueles lugares tabus do imaginário judaico. Espectros do mundo que se foi passaram a povoar, outra vez, aquelas localidades, numa espécie de sobrevida imaginária às catástrofes. É nesse universo a meio caminho entre a imaginação e a existência, entre a memória e o turismo que se situa o livro Os Desaparecidos, do norte-americano Daniel Mendelsohn, publicado nos Estados Unidos há dois anos, e agora disponível em tradução brasileira de Nancy Rozenchan. O autor, helenista de formação e articulista do New York Times, vem de uma família originária de Bolechow, cidadezinha onde conviviam judeus, poloneses católicos e ucranianos ortodoxos. Até 1918, Bolechow era parte da Galícia austro-húngara, uma região onde, nas palavras do escritor Soma Morgenstern, "os homens conviviam com os livros", e onde emergiram talentos literários notáveis como os de S.Y. Agnon, Bruno Schulz e Joseph Roth. Até 1939, foi da Polônia e, depois de invadida, sucessivamente, por russos e por alemães, tornou-se ucraniana em 1945. Ou seja, um típico "lugar que não existe mais". Um dos tios-avôs do autor, Schmiel Jäger, não deixou Bolechow a tempo, e pereceu nas mãos dos nazistas com sua esposa e suas quatro filhas, bonitas e bem-educadas. Jäger fora uma personalidade em Bolechow, "um peixe grande num lago pequeno", como ele mesmo dizia. E Mendelsohn, desde a infância, via fotos desses familiares, que lhe despertaram a curiosidade sobre aquele mundo - uma curiosidade que a passagem do tempo só fez acirrar. Assim, no ano 2000, ele partiu para uma investigação in loco da história desses desaparecidos. Viajou a localidades remotas, em busca de pessoas que tivessem conhecido os Jägers, e que pudessem lhe contar como viveram e como morreram. O resultado está neste volume de 500 páginas: um relato duplo, sobre essas viagens e os fatos que ele descobriu nelas. Ambos os temas concorrem no desenvolvimento da narrativa, que combina depoimentos de testemunhas oculares e trechos de cartas a descrições de encontros com anciãos e com a própria Bolechow. Mistura de reportagem, livro de história, memorial, crônica familiar, cronique scandaleuse e obra de ficção, entremeado por citações e comentários bíblicos, Os Desaparecidos não pode ser classificado em nenhum dos gêneros literários existentes. Talvez Daniel Mendelsohn tenha recorrido a todos os expedientes da escrita justamente por tentar abordar a partir de uma multiplicidade de pontos de vista um tema que resiste à compreensão e ao entendimento. Sua investigação tenaz e minuciosa e sua determinação em desencavar os detalhes da história de seis entre seis milhões de vítimas do Holocausto, e em visitar o lugar onde viveram e onde morreram, expõe fragmentos dos "lugares que não existem mais" e de sua destruição, que dizem respeito a todos os descendentes de judeus daquela parte do mundo. E preserva, por meio da voz de seus antigos moradores, octogenários e nonagenários que rapidamente desaparecem da face da Terra, a memória de um acontecimento-chave da história do século 20. Luis S. Krausz, doutor em Literatura e Cultura Judaica pela USP, é autor de Rituais Crepusculares: Joseph Roth e a Nostalgia Austro-Judaica (Edusp)

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