Venham para dentro, o sereno está forte

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Por Ignácio de Loyola Brandão
Atualização:

Tempos de coisas em extinção. Não apenas espécies animais ou vegetais, mas também usos, costumes, hábitos, comportamentos, valores. Por exemplo, a ética política se evaporou tragada pela sordidez dos senadores. Encontramos resquícios dela aqui e ali, pequenos fragmentos que devem ser estudados pelos arqueólogos como peças preciosas. Mas, quero falar sobre coisas que perduram, mantêm-se em meio a tsunamis e furacões, nesta época em que tudo é superficial, efêmero, inconseqüente. Semana passada circulei por Araraquara para comemorar as bodas de ouro de Luis, meu irmão, e Elza. Foi uma viagem no tempo. A missa e a renovação dos votos do matrimônio se deram na capela do Colégio Progresso, uma das escolas mais tradicionais da cidade. Eles se conheceram na ferrovia e ali se casaram em 1957, ano em deixei a cidade para sempre. Hoje aposentados, sobrevivem dignamente dentro de um sistema previdenciário falido. Permanecer cinqüenta anos casado é anacronismo, algo que ficou fora de moda. Luis e Elza deveriam ser estudados como seres singulares. Hoje - não sou moralista, apenas observador - se descasa no momento em que o marido diz à mulher: feche a porta você, estou sem chave. E aí começa: está sem chave por quê? O que fez com a chave? Na certa esqueceu a chave na casa da outra! Assim vai, assim termina. As relações amorosas são voláteis, se dissipam rápidas. Agora, ficar ali, lado a lado, com flores e amargores, as pessoas não parecem dispostas a enfrentar. O casamento se modernizou, dizem, se atualizou, sua estrutura se modificou, agora é diferente. Amor e desamor andam juntos, de mão dadas. O casamento parece bom enquanto as pessoas estão contentes por ficar. Quando o ficar se torna rotina, mudemos, cada um para seu lado. Nem sabem para que lado ir. Agüentar os trancos ninguém quer. Viver a dois se tornou colocar juntos um par de individualistas e de egocentrismo Regressar à capela do Progresso onde estudei me deixou obnubilado. Saí para o pórtico, eram 7 da noite, aquele enorme espaço vazio e silencioso me tocou. O piso continua o mesmo, só o velho relógio desapareceu da parede. Ali nos reuníamos agitados aos sábados para receber a medalha de bom comportamento. Ainda ouço as vozes. Quem ficou quieto durante a semana, não conversou, não bagunçou, estudou, recebia a medalha que vinha numa fita azul para os homens. Apesar de tímido, calado, nunca recebi uma dessas condecorações, para desgosto de minha mãe que devia à Emilia Albertini, a diretora, um favor: a bolsa com que eu estudava. Eu, pobre, no colégio de ricos. Ao menos uma medalha, ela me pedia. Sempre havia na classe um sabotador que infernizava e eu caía, minha medalha se perdia. Terminado o religioso, alegre, descontraído, ainda mais com Raissa, Larissa e João, três irmãos musicistas, e com Maria Rita cantando Ave-Maria, de Gounod, e João Bosco, o caçula dos irmãos, como coadjuvante, seguiram todos para a casa onde haveria uma festa-surpresa para os recém-renovados-casados. Dessas coisas de interior que também andam se evaporando. Quintal iluminado, lâmpadas nas árvores, mesas ladeadas por pitangueiras, ameixeiras, uma parreira (cuja muda foi plantada pelo meu pai e que tem dezenas de anos) e um pau-brasil imponente, bolos de casamento e canapés de todos os tipos e sabores, quitutes, petit-fours, pequenas delícias que foram feitas em casa mesmo pelos filhos Cecília, Ike, Fernando, Silvinha. Tudo produzido ''''secretamente'''' com manobras para despistar. Ao lado de meu sobrinho e afilhado Carlos Alberto, voltei ao quintal da casa em que nascemos todos, os cinco filhos, três ainda vivos. Escolhi a mesa que se localizava no espaço da desaparecida mangueira de manga-rosa. A última reunião de que participei neste quintal foi antes da morte de meu pai, em 1988. E então no sábado passado, Luis e eu percebemos que Totó, meu pai, estava ali quieto como sempre foi, rastelando folhas secas e amontoando, observado pelo Amadeu, pai de Elza. Ritual praticado religiosamente uma vez por semana, por décadas. Limpar o quintal no fim da tarde, varrer e atear fogo às folhas secas. A cena trazia um tom de Morangos Silvestres, de Bergman. Elza, sentada, nos olhava, admirada com a expressão que Luis e eu tínhamos nos rostos, distantes algumas décadas. De tal modo que nos voltamos e vimos nossa mãe Maria do Rosário - falecida em 1968 - na porta da cozinha, dizendo: ''''Venham para dentro, o sereno está forte!'''' O sereno, outra coisa em extinção. Luis sorriu: ''''Vamos ficar esta noite, desça para a festa, Elza e eu completamos 50 anos de casados.'''' E minha mãe: ''''50? Olhe o que está me dizendo! Egydia e eu estamos vindo da capela do Progresso, acabamos de assistir ao casamento de vocês, que meu São José os abençoe. Venha Totó, vai pegar uma friagem.'''' Egydia, mãe de Elza. Meu pai pendurou o rastelo no prego do muro sob o telheiro de zinco, pegou no braço de minha mãe. Desapareceram, mas o perfume dela, Coty, de um vidro em forma de bola, permaneceu no ar.

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