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Em Elos de Melodia e Letra, Luiz Tatit e Ivã Carlos Lopes analisam o modo de composição de seis clássicos nacionais

Por Francisco Quinteiro Pires
Atualização:

Canção não é música nem literatura. Canção é canção, resultado das relações entre letra e melodia. Há quase 30 anos, o compositor e teórico Luiz Tatit partiu desse pressuposto para criar modelos de análise sobre o cancioneiro nacional. Com auxílio da semiótica, ele descobriu que a melodia das canções reforçava o conteúdo das letras. Ambas produzem um sentido homogêneo, que ele buscou desvendar em seis canções em Elos de Melodia e Letra - Análise Semiótica de Seis Canções (Ateliê, 184 págs., R$ 34), livro escrito com Ivã Carlos Lopes e mandado recentemente para as livrarias. Luiz Tatit escolheu as seguintes composições: Terra e Fora da Ordem, de Caetano Veloso, Olê, Olá e As Vitrines, de Chico Buarque, e A Felicidade e Eu Sei Que Vou Te Amar, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Tatit não se interessa pelo anedotário em torno dos autores e das obras. Ele foge das análises impressionistas. Em vez de se preocupar com as intenções criativas do autor, se detém sobre a variação de tons ou o alongamento de uma nota. Elos de Melodia e Letra é o resultado mais recente da descoberta, feita em meados os anos 1970, de que a canção é uma linguagem à parte, baseada na melodia natural da fala. Isso explica por que cancionistas sem formação musical são capazes de compor com sucesso. Por conta do apelo popular, a canção também é um universo privilegiado para debater os grandes temas nacionais. "Ela vem de uma oralidade básica. Por isso o Brasil é tão bom na canção, porque é um país oral." Há 30 anos essa noção estava longe de emplacar. Mas, com a atuação de Tatit e de colegas como José Miguel Wisnik, ela deixou de ser novidade, embora não esteja consolidada como massa crítica. O violonista Luiz Tatit continua compondo. Ele prevê lançar até o fim do ano um novo CD - Sem Destino - com 13 faixas. Tem como parceiros Alice Ruiz e Marcelo Jeneci. É mais um trabalho que reforça a diversidade do cancioneiro atual. "Hoje os músicos vivem da própria produção, diferentemente da minha época em que você tinha de fazer outra coisa junto para sobreviver", ele diz. Leia mais sobre o livro e a trajetória de Luiz Tatit a seguir. Como o livro Elos de Melodia e Letra se insere na sua trajetória teórica? Os critérios de escolha das seis canções tratadas revelam aspectos de seu procedimento de análise? Este livro foi mais a fundo na análise das relações entre melodia e letra, demonstrando o sentido que a canção promove. Esse sentido tem a ver com o seguinte: tem coisas que são ditas nas letras e reforçadas pela melodia. Dizer que uma melodia mais bonita vai falar de assuntos alegres é fazer uma análise superficial. Existem aspectos na repetição melódica, no fato de ir do agudo para o grave, que significam coisas. Eu trabalho só com música consagrada, que passou pelo crivo do mercado. Não adianta analisar músicas experimentais. Peguei autores consensuais como Caetano, Chico, Vinicius e Tom que influenciam todos os cancionistas até hoje, porque não queria que houvesse desconhecimento das canções, que exploram bem a letra e falam sobre a noção de tempo. Sabemos que a universidade fazia restrições à canção como uma forma de expressão artística a ser analisada, o status dela era inferior ao da literatura, da música, das artes plásticas, etc. Como ela absorveu os modelos teóricos que você começou a criar há quase 30 anos? Nos anos 1960, fora do Brasil, Umberto Eco alertou para formas de expressão sem tradição que mereciam uma análise, ainda mais por serem modernas e dinâmicas. Ele já falava de analisar o cinema, a televisão, a história em quadrinhos. Na sequência vieram outros como Abraham Moles e Edgar Morin, francês que chamava a atenção para a canção. Ele já via a importância da canção no mundo, na época do Beatles e Elvis Presley. No Brasil o lançamento de Balanço da Bossa e Outras Bossas, do Augusto de Campos, foi muito importante. Foi o primeiro livro que se dedicou à canção. Lembro que fiquei muito impactado - canção ser objeto de análise era uma coisa impensável. Quando comecei a estudar semiótica, percebi que tinha elementos para fazer a análise. De cara vi que a música não daria esses elementos. Achava que podia ser a teoria literária, mas arrumei a metodologia com a semiótica. Tinha muita gente com isso na cabeça, como o José Miguel Wisnik, mas ninguém havia proposto um modelo. Tentei montar um. Se não fizesse, outro faria. Esse modelo sofreu modificação significativa ao longo do tempo? Sim, ele não parou de sofrer. Mas algumas coisas essenciais permanecem como a ligação entre a entoação da fala e a elaboração da melodia. Isso foi uma grande descoberta. A teorias se desenvolveram a partir da ideia de que a entoação da fala tem a ver com a composição da melodia. Foi difícil explicar que a canção não é música, e é por isso que as pessoas sem formação musical podem compor. Como Lamartine Babo, Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa, Noel Rosa, Caetano Veloso conseguiram sem ter formação? É um dom nato? Eles aproveitam a melodia da fala para fazer a canção. A exceção é o Tom Jobim, que teve formação. A entoação da fala não é tão importante para ele. Daí então a importância da oralidade na canção? A canção vem de uma oralidade básica. Por isso o Brasil é tão bom na canção, porque é um país oral. A tradição brasileira não é letrada. Quase tudo é canalizado para essa área. Se um poeta de formação letrada quer ter mais público, acaba entrando na canção. Os estudos ajudam ou atrapalham o seu processo de composição? Durante muito tempo isso foi independente. Até nas fases do ano - compunha mais nas férias e fazia os textos teóricos durante o tempo letivo. Depois fui mais solicitado, comecei a fazer mais parcerias, então hoje componho o ano inteiro. Você não imagina como é diferente a cabeça de quem vai criar e a de quem vai analisar. Até por princípio quem cria não sabe analisar e vice-versa. É claro que o mesmo indivíduo pode incorporar as duas coisas. Até porque você está trabalhando com modelos teóricos que independem do objeto.

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