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Veia poética e despretensiosa

A Viagem a Nápoles, única ficção de Sérgio Buarque de Holanda, revela um narrador repleto de encanto e graça

Por Humberto Werneck
Atualização:

Não é impossível que alguns leitores recebam com pouco-caso a notícia de que está na praça um conto de um autor que não era contista, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). A reação não seria, aliás, muito diferente daquela má vontade com que uns tantos desqualificam os romances de seu filho Chico - não exatamente por motivos literários, mas por verem neles o fruto de uma atividade diletante de quem, sendo compositor de música popular, deveria respeitar uma reserva de mercado, abstendo-se de invadir seara alheia para meter a mão na cumbuca da prosa de ficção. Também no caso de Sérgio, tamanho preconceito será uma pena, pois, em sua despretensão, A Viagem a Nápoles é uma boa e bem contada história. Seria pequenez de espírito reduzi-la a mera curiosidade, a uma juvenil pulada de cerca do ensaísta de Raízes do Brasil (1936), Cobra de Vidro (1944), Monções (1945), Caminhos e Fronteiras (1957), Visão do Paraíso (1959) e Tentativas de Mitologia (1979). O conto, que neste livro ganhou belas e delicadas ilustrações de Vallandro Keating, foi escrito há quase oito décadas - no final de 1930, quando Sérgio Buarque de Holanda, aos 28, encerrava uma permanência de dois anos em Berlim. Não foi a única novidade que ele trouxe da temporada alemã. "Brasileiros que viveis uma vida apertada, conversai com o Sérgio!", incitou Manuel Bandeira numa crônica com que saudou em janeiro de 1931 o retorno do amigo. "Ele vos contará cousas de deixar água na boca e traz detalhes surpreendentes, como o da venda em caixas automáticas, que se encontram por toda parte - nos cafés, nos bares, nas ruas, ao lado das caixas de correio - de um certo artigo de caoutchouc, que aqui só se compra em farmácia e meio que encalistradamente." Apesar da facilidade com que se podia comprar uma camisa de vênus, Sérgio engravidou uma namorada, Anne Margerithe Ernst, mãe de seu filho Serge George, nascido quando o pai já havia retornado à pátria. Seguiu trabalhando no conto a bordo do navio que o trouxe de volta ao Brasil, e por algum tempo ainda no Rio de Janeiro. Não tratava, pois, a empreitada como brincadeira, na mesma prateleira, por exemplo, dos sambinhas domésticos que, já maduro, haveria de compor com a filha Miúcha, como um divertido Larga da Minha Perna ("Larga da minha perna, rapaz / cai fora / vai passar essa cantada / em alguém que te dê bola / não me amola!"). Tanto que Sérgio ainda não dava o trabalho por terminado quando, exausto, pingou um ponto final. "Sinto-me no momento inteiramente incapacitado para retomar o assunto", escreveu ele ao encaminhar o conto a Mário de Andrade, em 10 de maio de 1931 - e explicou: "A gente não volta a Pasárgada quando quer, como voltam as pombas aos pombais. Seria possível que eu tornasse a escrever tudo, sem ver o texto atual, escrever com mais fluência e abandono". A Viagem a Nápoles saiu pela primeira vez em dezembro de 1931, no número 4 da Revista Nova, interessante publicação que Mário, Paulo Prado e António de Alcântara Machado editaram em São Paulo entre março de 1931 e dezembro de 1932, e que tinha por objetivo divulgar "...tudo quanto se refere a um conhecimento ainda que sumário desta terra, através da contribuição inédita de ensaístas, historiadores, folcloristas, técnicos, críticos e (está visto) literatos". Em carta a Manuel Bandeira em novembro de 1931, Mário informou que o próximo número da Revista Nova traria o conto de Sérgio Buarque de Holanda - no qual, acrescentou, o colega Alcântara Machado vira "sonhos forniquentos". Embora A Viagem a Nápoles não chegasse a tanto, foi essa, segundo Mário, a razão pela qual a equipe da revista escolheu, para funcionar como espécie de contrapeso moral, um poema bem inocente, Sacha e o Poeta, dedicado por Bandeira à netinha de sua namorada, Madame Blank. Não falta encanto e graça à saga de Berlamino, garoto paulistano de 12 anos cujas desventuras são anunciadas já na primeira linha da história: "Agora que lhe furtaram os dois dentes da frente, a vida vai perder seguramente todo o seu sabor". Perderá? A ver. O certo é que, pela mão do impecável narrador, o menino vai percorrer enredos que, mesmo atravessando sítios reconhecíveis como a Praça da República, no centro da cidade, o levarão, se não a Nápoles, ao território de sonhos não necessariamente "forniquentos", mas nem por isso menos excitantes, num clima de absurdo que faz lembrar Alice no País das Maravilhas. O conto agradou a ninguém menos que Graciliano Ramos, que muitos anos mais tarde o incluiu na sua Seleção de Contos Brasileiros (volume 3, Sul e Centro-oeste), lançada, sem referência a data, pelas Edições de Ouro/Technoprint. Em 1998, foi objeto de um estudo do professor Francisco Foot Hardman, Duas Viagens a Nápoles, publicado pela Fundação Casa de Rui Barbosa e que trata também de uma crônica inédita do escritor pernambucano Alberto Rangel (1871-1945), Pitoresco e Estafa, de 1908, sobre uma excursão ao Vesúvio. Tanto quanto se possa saber, Sérgio Buarque de Holanda não mexeu mais no texto de 1931, e nunca voltou a escrever ficção - da mesma forma como, transposta a juventude, deixou secar uma veia poética da qual, se não ficaram amostras, há pelo menos uma testemunha: "Saibam todos que Sérgio versejou antes dos vinte anos, e sabia fazer versos no duro", registrará Bandeira na crônica Sérgio, Anticafajeste. Por falta de incentivo não terá sido, nem, pode-se arriscar, por falta de confiança no taco. Na carta com que encaminhou o conto a Mário, ele disse que A Viagem a Nápoles não o desagradava de todo: "A mim, na verdade, não me satisfaz muito esse exercício de ficção, salvo na sua parte final". Leitores igualmente exigentes haverão de curtir também o que vem antes dessa última parte. Humberto Werneck é jornalista e escritor, autor de O Santo Sujo - A Vida de Jayme Ovalle e O Desatino da Rapaziada

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