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Van Gogh, um homem comum?

Em seu retrato do pintor, Pialat procura evitar o clichê de gênio incompreendido

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Há muitas maneiras de representar os grandes pintores no cinema e Maurice Pialat escolheu a mais singela de todas. Mostra Van Gogh nos meses finais de sua vida, em Auvers-sur-Oise, em seu trabalho obsessivo mas também na normalidade de alguém que ama as mulheres, conversa com os moradores, bebe um copo de vinho e se diverte. Um Van Gogh próximo do comum dos mortais, o que não significa abstrair dele a sua grande arte, até então absolutamente não reconhecida por público ou marchands. Não se pode dizer que o processo de criação seja o foco principal deste filme. De fato, vemos o Van Gogh ficcional (muito bem interpretado pelo cantor francês Jacques Dutronc) no trabalho de algumas telas. Mas não se trata aqui de especular sobre a capacidade de transfiguração da paisagem e dos personagens que ele retratava, e sim de entender a maneira como os via. A própria opção de recorte biográfico levou a esse tipo de estudo concentrado. Por algum motivo, Pialat preferiu abordar a vida do pintor holandês através desses pouco mais de dois meses decisivos do que por uma vida inteira. Como se esse recorte oferecesse o sumo, um concentrado do que foi aquela vida entrelaçada a uma obra. O DVD da Versátil inclui entre os extras um curta-metragem esclarecedor, dirigido pelo próprio Pialat em 1965. Nesse pequeno filme em preto e branco intitulado simplesmente Van Gogh (da mesma forma que o longa), Pialat mostra Auvers e como o pintor a retratou em sua tela. Conta, brevemente, a estada de Van Gogh por lá, os intensos 66 dias nos quais ele produziu 70 quadros e 33 desenhos, além de ter namorado a filha do médico que se ocupava dele, o Doutor Gachet, de quem fez um retrato famoso. Ao fim desse tempo, Van Gogh disparou uma pistola contra o próprio abdômen, vindo a morrer no dia seguinte. Tais são os "fatos", bastante conhecidos por quem se interessa pela vida do pintor. Mas o que fazer com eles? Como interpretá-los? A opção de Pialat foi pela desdramatização, revelando Vincent Van Gogh como homem comum, porém com um tipo de sofrimento pouco suportável, que se manifesta de maneira intermitente. De fato, ele chega a Auvers recomendado ao Doutor Gachet (Gérard Séty) e fica sob seus cuidados. Queixa-se de "crises", que vão e vêm. Mas não é tanto esse homem atingido por uma enfermidade que vemos na tela e sim um tipo sedutor, que se encontra com uma prostituta conhecida e com ela faz amor, e depois seduz Margueritte Gachet (Alexandra London), de quem pinta o retrato. Por outro lado, o filme é também um inventário de referências visuais à França dos impressionistas, na maneira como as cores, linhas e volumes são captadas pelo desenho fotográfico do longa-metragem. Quer dizer, Van Gogh (1991) é um filme sobre um pintor, mas também obra que se oferece como pintura. Incorpora, em sua linguagem, a própria matéria de que trata. Por exemplo, vemos nas cenas de baile e cabaré as referências a Toulouse Lautrec, nos piqueniques a aproximação a Déjeuner Sur l?Herbe, de Monet, e assim por diante. Nada disso faz de Van Gogh um filme "intelectual". Pelo contrário. A preocupação de Pialat foi manter a mais límpida coloquialidade, seja nos diálogos, seja nas ações dos personagens. Não se vê na tela o artista atormentado por grandes dúvidas em relação à sua forma de expressão. Ele pinta, e isso é tudo. Tão natural quanto respirar. As pessoas ao seu lado vivem o cotidiano um tanto sonolento da província, e também isso é tudo. Os grandes conflitos do artista são internos, e é isso o que se pode adivinhar pela figura bastante sóbria interpretada por Dutronc. Por falar nisso, talvez tenha sido muito feliz essa escolha de ator. Pialat havia primeiro convidado Daniel Auteuil para viver Van Gogh em seus meses finais. Mas Auteuil acabou desistindo na última hora, diante da previsão de oito meses de dedicação exclusiva à filmagem. Parece que ficou atemorizado também pela fama de tirano de Pialat. E assim o papel acabou caindo no colo de Dutronc, o que pode ter sido um acaso benéfico para o longa. Auteuil, grande ator que é, teria talvez "interpretado" demais Van Gogh. Talvez mesmo superinterpretado, em busca desse insondável humano que é o toque de gênio. Possivelmente orientado por Pialat, Dutronc buscou o despojamento mais extremo. Como se deixasse que a vida falasse por si só. E, assim, Van Gogh tornou-se um filme de climas e sentimentos, bastante sutil para ser considerado frio por alguns espectadores. Não se trata disso. Pialat mostra-se capaz de buscar emoção em cenas simples como a das mulheres da hospedaria que trocam a roupa de cama do pintor, quando este já está à morte em seu quarto. São toques singelos, breves, que buscam esboçar a existência banal, mas que pôde gerar aquela obra. Se mistério há, ele o deixou intacto.

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