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Vá pra China em três tempos

Por Roberto DaMatta
Atualização:

Acompanhando as Olimpíadas de Pequim em tempo real, podendo escolher os comentadores e as imagens, lembro do tempo em que a expressão "Vá pra China!" era um desabafo negativo. Quando não ofendia, promovia desapontamento e tirava a graça. Naquela "China" do antigo imaginário nacional, as coisas tinham sinais trocados. O luto era expresso pelo branco; as mulheres tinham os pés pequenos, só se comia arroz e, mesmo assim, como diz aquela famosa marchinha de Lamartine Babo, "uma vez por mês". Havia - é claro - as fantasias de luxo de chinês, dos bailes de carnaval, o xadrez chinês e a famosa (e, pelo que sei, ainda persistente) "tortura chinesa". Mas o mundo apequenado pela globalização e igualado pelo moinho satânico do mercado e da competição, transformou o clássico "Vá pra China" num elogio, promoção ou metáfora de medalha de ouro. Mesmo sem querer, começamos a descobrir que os fatos sociais não se reduzem adequadamente a nenhuma natureza e que tudo (por exemplo: combinar a interdependência entre o dualismo do yin e yang com competição e acumulação linear e progressiva de bens; e divinação com previsão mercadológica) é possível. O espírito do capitalismo pode ter sido dinamizado pela ética calvinista, mas isso não significa, como mostram o caso japonês e chinês, que para adotá-lo seja preciso uma conversão. Pelo contrário, visto como um outro, ele pode ser adaptado com mais liberdade quando o desenho da cultura que o recebe não separa radicalmente, como já dizia Marcel Grant, em 1929, sujeito e objeto, ritmo e mudança e, mais importante que isso, tem uma atitude de firme recusa aos dogmas, o que facilita a passagem entre todos os "regimes". De uma palestra de um colega chinês sobre a questão da democracia na China que assisti na Universidade de Notre Dame, guardei os dentes podres e o mau hálito do conferencista e a seguinte história. Um imperador apaixonou-se por dragões. Ele respeitava as tartarugas porque elas traziam nas costas o emblema das divisões geométricas da terra e eram usadas como medidas de comprimento; mas sua adoração recaía nos dragões, donos do regime de chuvas e aliados dos heróis civilizadores. O imperador queria ser como o monge que inaugurou a grande dinastia Ming, espécie de JK da China Antiga. Ele adorava a lenda segundo a qual um dragão teria sido visto rondando o trabalho de parto do fundador dos Ming, estabelecendo um elo profundo entre seus poderes positivos e as realezas prósperas. Essa admiração fez com que tomasse a decisão de viver cercado de dragões. Suas roupas, objetos e palácio tinham a forma ou carregavam a imagem de um dragão. À noite, não ia dormir sem antes olhar melancolicamente a montanha que servia como lar para esses dragões que tanto admirava e que louvava em poesias, orações e obras de arte. Seu sonho ou, como se diria hoje em dia, projeto, era ter a suprema felicidade de encontrar um dragão. Quando ficaram sabendo disso, os dragões - suscetíveis que são ao enternecimento e aos desejos honestos - resolveram visitar o reino cujo soberano os tornara alvos de seu arrebatamento. Mas qual não foi sua surpresa quando descobriram que, quanto mais se aproximavam do palácio desenhado em sua homenagem, mais o imperador deles se protegia e enviava seus exércitos para destroçá-los. O professor chinês terminava sua história acentuando que, tal como o imperador da lenda, os modernos políticos chineses querem muito a democracia, mas quando ela se aproxima, eles tremem de medo, sentem uma formidável repulsa. A vitória de Cesar Cielo Filho, numa das provas mais significativas dos jogos, os 50 m de nado livre, tornando-o o nadador mais veloz de um mundo que adora a rapidez e inscrevendo o Brasil de modo definitivo no panteão do esporte mundial, trouxe de volta - ao menos para os brasileiros que competem seminus - o "espírito Olímpico" que, com a crise entre a Rússia e a Geórgia e a nossa própria dura realidade social, nos levam para bem longe dos "ninhos de pássaro" e dos "cubo d?água" (cujo teto, por sinal, tem recortes idênticos aos do casco de uma tartaruga). No fundo, toda disputa esportiva produzida com ênfase dramatiza positivamente o espírito capitalista da competição justa, na qual vence não quem nasceu aqui ou ali, pertence a certo partido, é branco ou carrega "nome de família", mas teve o melhor desempenho. As lágrimas do campeão comovem porque exprimem a sua humanidade. Cielo Filho foi o grande campeão, mostrou-se dono mais absoluto de uma técnica de corpo e maestro de uma habilidade, vontade e poder físicos incomparáveis, mas ele não esqueceu que a medalha conquistada pertencia também a uma rede de laços que trazia dentro do seu coração. Suas lágrimas, ao ouvir o hino nacional, foram a aliança que realizou com todos nós que nos transformamos em seus pais e irmãos, graças ao espírito das disputas tão transparentes quanto a piscina na qual foi vencedor. Por ele, valeu termos ido pra China.

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