Sempre que se discute o poder conferido à diretoria de Marketing das empresas para investir em projetos artísticos, por meio das leis de incentivo, um caso exemplar é o de Bicho de Sete Cabeças. Nenhuma empresa queria investir num filme sobre drogas, no qual o protagonista conhece o inferno no sistema manicomial. Laís Bodanzky filmou, na cara e na coragem, o roteiro que Luiz Bolognesi adaptou do livro de Austregésilo Carrano. O filme estava ?na lata?, como se diz, e nela talvez tivesse ficado se Laís não tivesse sido convidada para integrar o júri da Mostra de Cinema, onde conheceu Marco Müller, atual diretor artístico de Festival de Veneza e, na época, o homem da Fabrica, a divisão da Benetton para o cinema. Com apoio da Fabrica, Laís pôde concluir Bicho, um dos mais belos filmes da Retomada. A situação, agora, é muito mais confortável. A Warner está colocando o dinheiro, por meio do artigo terceiro - que regulamenta o investimento de distribuidoras estrangeiras na produção nacional -, e desta vez existem empresas interessadas em investir na produção da Gullane Filmes, que já se associara à Buriti, empresa de Laís e Luiz, para produzir Chega de Saudade. Dinheiro, apesar do período de crise, não está sendo o problema de As Melhores Coisas do Mundo. Laís pode manter o foco integral na realização, no trabalho com os ?meninos?. Em seus longas anteriores, ela sempre trabalhou com profissionais e não profissionais, mas desta vez são eles, os últimos, os protagonistas da história. Francisco Miguez e Gabriela Rocha, que fazem ?Mano? e ?Carol?, foram escolhidos entre centenas de candidatos. Sérgio Pena volta a preparar o elenco para Laís e volta e meia ele está no set - embora não esteja nesta tarde de segunda-feira, em que o repórter do Estado visita o espaço instalado no Liceu Pasteur, na Chácara Klabin. O Liceu Pasteur é uma escola francesa, que segue o calendário europeu. A escola está desocupada por estes dias. Os alunos que ocupam o pátio de recreio são figurantes, muitos deles foram candidatos aos papéis de Mano e Carol e são utilizados pela diretora em papéis menores. Adolescentes entre 15 e 17 anos, um pouco mais velhos do que os da série de livros de Gilberto Dimenstein e Heloisa Prieto. O alarido é grande no pátio, parece uma escola em funcionamento, mas é tudo ficção. A diretora prepara a cena com o fotógrafo Mauro Pinheiro - "Desde que vi Cinema, Aspirinas e Urubus (de Marcelo Gomes) sabia que teria de trabalhar com ele; Linha de Passe (de Walter Salles e Daniela Thomas) somente aumentou esse desejo", explica Laís -, os adolescentes dispersam-se pelo pátio. Francisco está sentado no chão, no meio de um grupo, exatamente como faria Mano. O personagem da tela guarda diferenças significativas em relação ao do livro. É um pouco mais velho, por exemplo. As situações do filme não são as dos livros - quer dizer, não são na medida em que não foram adaptadas do que Dimenstein e Heloisa criaram, mas não se pode fugir muito a esse universo teen. Tão logo foram contatados pela Warner - e Dimenstein -, Laís e Bolognesi propuseram uma forma de se apossar do projeto de encomenda, mantendo-se fiel a ele. Em vez de adaptar os livros, eles criaram grupos de pesquisas em várias escolas de classe média e classe média alta. Foram ouvir o que os próprios adolescentes tinham a dizer sobre eles, a família, a escola, o mundo. Com base nas pesquisas, o roteiro tomou forma e os diálogos foram escritos - mas a página não oferece nenhum dogma. A garotada pode reinventar as falas, desde que se mantendo fiel ao espírito das cenas. Com os jovens, contracenam os ?veteranos? - Denise Fraga, em seu segundo projeto consecutivo com a Warner (após Cristina Quer Casar, de seu marido Luis Vilaça), faz a mãe de Mano. Caio Blat é um professor camarada, que ainda se sente ?ligado? (pela própria idade) à turma. Paulo Vilhena, de novo trabalhando com Laís (após Chega de Saudade), é o professor de violão do herói. A equipe é de sonho. Além de Mauro Pinheiro, Laís trabalha com o diretor de arte Cássio Amarante, de Central do Brasil e Encarnação do Demônio, e a montagem será de uma fera da edição, Daniel Rezende, multipremiado por sua participação nos filmes de Fernando Meirelles, Cidade de Deus e Ensaio Sobre a Cegueira. A previsão de estreia é para 2010. A diretora é meticulosa. A liberdade do elenco jovem termina onde começa a marcação da cena - "O filme tem grua, marcação de luz. Um passo a mais pode estragar a cena. Tudo é muito planejado", ela diz. Luiz Bolognesi fica de longe, seguindo (admirando?) a mulher no trabalho. Ele não interfere, pelo menos no set. "Olha como ela fica feliz. Laís se reinventa nos sets enquanto inventa os filmes."