Uma vida com ares de filme

Autobiografia de J.G. Ballard mostra como trajetória moldou a sua produção

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Por Ronaldo Bressane
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Biografias de escritores costumam ser um tanto chatas. A não ser no caso de inquietos como Jack London, Joseph Conrad ou Paulo Leminski, aventuras e agruras de um escritor se passam estritamente no plano psicológico. Quanto a autobiografias, bem... é preciso sempre ficar atento à mitomania: afinal, são escritores, seres por natureza inconfiáveis. Mas exagero passa longe deste Milagres da Vida (tradução de Isa Mara Lando), livro que o inglês J.G. Ballard finalizou pouco antes de morrer de câncer de próstata, em 2008. ''Com uma vida dessas, até eu escrevia'' é a frase que ecoa o tempo todo durante a leitura: Ballard experimentou fatos tão raros que simplesmente contá-los sem ênfase já os torna incríveis. Ao final do livro, o leitor percebe uma curiosa sensação de flutuação, trazida pelo violento contraste entre a serenidade com que é narrada a biografia e o estranhamento que esta lhe causa - uma assombração que se traduz em obras de impacto como Crash. O pai de Ballard era um industrial idealista, um químico intelectual que gostava de H.G. Wells e abriu uma filial de uma fábrica de estamparias em Xangai. Nascido na China, Ballard passou a infância em uma mansão britânica servida por meia dúzia de empregados chineses e um par de babás russas - uma família ocidental burguesa, exceção em uma metrópole vibrante, de 5 milhões de pessoas, em que somente 50 mil não eram chinesas, população majoritariamente miserável. ''Xangai me impressionava como um lugar mágico (...). Creio que grande parte da minha ficção é uma tentativa de evocar essas coisas todas, por outro meio que não a memória.'' Entre tantas cenas memoráveis, Ballard descreve a sensação de irrealidade que o tomou quando foi, com o pai, pedalar até um cassino - um nada prosaico passeio, afinal, a cidade havia sido recém-tomada pelos japoneses. Quando chegaram, viram o cassino completamente dilapidado, e o outrora glorioso fausto ocidental se convertera em lixo: nisso Ballard intuía ''a sensação de que a própria realidade era um cenário que podia ser desmontado a qualquer momento e que, por mais magnífico que parecesse, podia ser varrido a qualquer momento e atirado na lata de lixo do passado'', simbolismo que será determinante em sua ficção. Então o Japão declarou guerra à China, e a boa vida na mansão foi subitamente deletada. A família Ballard foi levada a um campo de refugiados ocidentais, Lunghia, e ali permaneceu até o fim da guerra; nos últimos meses, a fome, a morte e a doença eram constantes nessa prisão. Apesar disso, Ballard se refere aos anos como interno como uma época feliz: ''Do que mais gostava era que qualquer pessoa, de qualquer idade, podia conversar com qualquer um.'' Ao contrário da infância burguesa resguardada pelos passeios no Packard familiar e raras incursões de bicicleta pela esquisita realidade da ''mais pervertida das cidades'', no campo de Lunghia o menino se sentiu absolutamente livre. Por esse motivo, em seu romance O Império do Sol, ele preferiu internar o pequeno James sozinho no campo de refugiados, vivendo longe dos pais. Assim se sentia: humilhados pela inutilidade social com que a guerra havia os rebaixado - o pai mal conseguia uma porção de chá preto para a esposa, que, deprimida, não saía da janela, e chegou a ver o filho se alimentando de larvas -, os pais de Ballard deixaram que o garoto se virasse como quisesse, travando contato com bandidos, militares, garotas e excluídos em geral: ''Toda uma gama de adultos que a minha vida anterior em Xangai mantinha longe de mim.'' Curiosamente, ao contrário do romance - esplendidamente adaptado por Spielberg, com Christian ''Batman'' Bale como protagonista -, Ballard nunca esteve tão próximo dos pais como quando viveu em um miserável quarto. Corta para 20 anos depois, quando Ballard se converteu em um verdadeiro ''pãe'' - com a morte da primeira esposa, é forçado a cuidar dos três filhos, os tais ''milagres da vida'' do título. Ao contrário da mansão na China, Ballard viveu em sua casa de subúrbio em Shepperton até o fim da vida, cuidando de tudo praticamente sozinho, sem babás ou parentes para lhe dar mão. Uma experiência natural nos anos 2000, mas ainda rara na Inglaterra dos 60 e a meiga ''fofura'' com que o escritor fala dos filhos pode impressionar um leitor que espere do narrador das perversidades sexuais de Crash uma personalidade bizarra. Ballard era um sujeito careta, pouco afeito a aventuras, viagens, drogas psicodélicas ou mesmo álcool, caseiro, que logo engatou um segundo e longo casamento. Talvez o contraste entre as singulares infância e adolescência e uma rotina regrada expliquem a limpidez com que o escritor descreve o horror do futuro suburbanamente vazio de O Reino do Amanhã. Antes dessa vivência ''normal'', contudo, Ballard teve um vislumbre de outra vida possível: foi piloto da Royal Air Force. O menino apaixonado pelos camicases que sobrevoavam Xangai (no filme de Spielberg, uma das sequencias mais belas é a do jovem James fantasiando voar num Zero) se tornou de fato piloto de caça. Por pouco tempo: para preencher o tédio do treinamento no desolado Canadá, Ballard viciou-se na leitura de revistas de ficção científica. Nessas desprezadas narrativas, ele intuiu estar um campo inexplorado pela ficção contemporânea adulta, ''uma forma de ficção que realmente tratava do tempo presente, e com frequência era tão elíptica e ambígua como a ficção de Kafka. (...) Ninguém num romance de Virginia Woolf jamais encheu o tanque do carro. (...) A chamada ''ficção séria'' só tratava dela própria (...), e era a sociedade de consumo que poderia fazer um passeio a outro Auschwitz ou outra Hiroshima que a ficção científica estava explorando''. Ballard preferiu então focar no ''espaço interior'' da ficção científica. Com A Exposição de Atrocidades (coleção de contos de 1966, sem tradução no Brasil), Ballard atinge esse espaço entre os horrores da guerra passada e os horrores do cotidiano futuro. Mais tarde, realiza uma polêmica exposição de carros acidentados, por onde desfilam modelos nuas, ''um teste psicológico disfarçado de arte''. Logo em seguida, escreverá Crash, que o coloca como um dos autores mais importantes da ficção inglesa do século 20. O resto é história - muitas, impossíveis de condensar em uma mera resenha, mas que Ballard resumiu em um livro agradavelmente perturbador. Ronaldo Bressane é jornalista e escritor, autor de Céu de Lúcifer (Azougue) Milagres da Vida J.G. Ballard Companhia das Letras 248 págs., R$ 47

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