Uma versão suspeita do espectro de um homem

John Dowell, narrador de O Bom Soldado, do inglês Ford Madox Ford, se parece com Bentinho, de Dom Casmurro, por também construir uma autoimagem de vítima

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Por Vinicius Jatobá
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Há escritores que, num manancial de obras, sem viço conseguem tingir um tecido com as cores da obra-prima; atingem essa fragrância. Esse é o caso do inglês Ford Madox Ford. Amigo dos amigos dos amigos, ativo membro dos sempre enfadonhos e covardes bastidores da política literária, influenciando edições apesar da incompetência, dando conselhos a escritores sem jamais ter escrito nada de interessante, colaborando com Conrad sem nada que justificasse essa confiança, Ford Madox Ford cometeu um livro que é um deslumbre técnico, um verdadeiro clássico. Nunca fez nada tão bom antes; nem repetiria nada com tanta eficácia depois. É um mistério que tenha escrito O Bom Soldado (1915). Mas escreveu. É um mistério inclusive para o próprio Ford, que não consegue explicar na carta que acompanha a edição brasileira como saiu do pastiche, da displicência, que praticou com tanta energia em suas primeiras quatro décadas, para o terreno da obra-prima. A história mais triste do mundo, como seu narrador mesmo a qualifica, começa com um mundo fulminado, repleto de personagens mortas. É um típico enredo de traição bem ao gosto dos folhetins de algumas décadas antes de sua publicação original: a mulher amante do melhor amigo; a doença fatal fingida para evitar a separação dos amantes; o marido obcecado que não percebe o que ocorre em sua volta. O romance lembra muito As Afinidades Eletivas, de Goethe, com sua história de casais diluídos pelo Eros da amizade, pelos jogos de sedução; e Ford transita num mundo literário abertamente estimado por ele mesmo: de James, captura o tema internacional - o confronto de sensibilidades entre o velho continente e o novo continente, ingleses e americanos -; de Flaubert, além do ideário (masoquista, superestimado) da palavra exata, a fascinação pelo tema tão oitocentista da traição, da infidelidade; e de Conrad, captura uma aportação técnica muito sutil, sofisticada: a construção de um conhecimento parcial do mundo narrado. James também foi um mestre nesses narradores que apenas contam aquilo que veem, e sugerem o que desconhecem. Dowell, o narrador de O Bom Soldado e o marido que tenta entender a história de traição de sua esposa com seu melhor amigo, narra no escuro: parte de um relato que é uma interpretação para construir um relato que é a interpretação das sobras dos gestos e palavras que sua memória reteve. A questão do romance, que lhe dá o salto que justifica seu prestígio, é logo se tornar uma pesquisa narrativa sobre a verdade, sobre a natureza da verdade e seu convívio com a ficção. Isso se torna mais claro com um contraste: em muito Dowell se assemelha ao Bento de Machado de Assis, já que sua narrativa é mais sobre a construção de uma autoimagem de vítima do que propriamente a traição. Partindo de um desejo semificcional (um livro sobre o subúrbio carioca), Bento constrói a "verdade" de sua vida transformando-se em vítima trágica de sua própria história. Dom Casmurro trata essencialmente sobre disfarçado prazer (quase erótico) que a vítima de uma traição tem em se ver, no ato de rememoração, como ser vitimado: e a elaboração esmerada da forma como expõem sua minitragédia demonstra o quanto essa imolação dá sentido ao vazio de uma vida sem grandes feitos. Apenas para Dowell, para sua mente excitada de ficção, contagiada de versões, autocomplacente, sua história seria a mais triste do mundo uma vez que esse é um palco onde existe apenas seu próprio espectro pasmado. Ser vítima da traição eleva tanto Dowell como Bento, enobrece-os, coloca-os como protagonistas de uma tragédia que apenas existe quando reorganizam sua memória tragicamente. Edward (o amante consumado) e Escobar (o amante suspeitado) dividem a mesma admiração: tanto Bento como Dowell são fascinados pela proximidade desses amigos, e estão mergulhados numa névoa algo homoafetiva - uma admiração que se confunde com posse, e curiosamente sofrem uma dor profunda quando essa amizade é rompida com uma traição. A descoberta e a suspeita produzem o mesmo resultado, um sentimento de dupla traição, que fenece ainda mais o ressentimento dos narradores dos livros. Dowell se esconde na penumbra monocromática de sua esmerada prosa, mergulhado numa maré de suspeitas, tateando enquanto atravessa o fog de sua memória; Bento torna-se o bufo genial de si mesmo, escondendo-se atrás de achados de linguagem, frases feitas, descrições epigramáticas, e mergulhado no humor envenenado com que tempera seus últimos dias. O sublime é que suas narrativas podem ser uma grande mentira, e como são os autores e os atores principais dos palcos que erigiram para si, resta apenas ao leitor fazerem da leitura uma rica experiência de suspeita da suspeita de outro. A diferença entre eles, Bento e Dowell, é de paternidade, porque o momento iluminado foi exceção da vida de Ford, e que resultou no brilhante romance O Bom Soldado, foi volumosa regra na vida de Machado. Vinicius Jatobá é crítico literário

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