Uma temporada ácida no inferno

Pelos textos curtos de O Imitador de Vozes desfilam prodígios, suicidas, assassinos e até gente normal

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Referindo-se ao corrosivo O Imitador de Vozes, de Thomas Bernhard (1931-1989), lançado há 31 anos e só agora traduzido no Brasil (por Sergio Tellaroli), o poeta e professor norte-americano Peter Filkins comparou a ironia do escritor austríaco à ação do ácido nítrico atacando uma chapa de cobre: ao mesmo tempo que consome o metal, ele cria belas gravuras de variadas texturas e tons. A comparação é perfeita. Bernhard foi um mordente que atacou o verniz da sociedade burguesa, especialmente a austríaca - nascido na Holanda e criado na Áustria, ele odiava tanto o país que proibiu a encenação de suas peças e a publicação póstuma de seus inéditos em sua terra, que era também a de Mozart e Hitler. Beleza e horror são irmãos siameses na literatura de Bernhard, o que explica a menção a essas duas figuras históricas. O escritor costumava definir a Áustria como um país infernal, que despreza suas melhores cabeças e destrói toda arte e ciência. É uma visão particular, que pede ponderação - até mesmo porque a tradução brasileira da obra recebeu incentivo do Ministério da Educação, Cultura e Artes austríaco -, mas faz pensar se a literatura de Bernhard seria a mesma se tivesse crescido em outro lugar do planeta, e não na Áustria, onde a extrema direita sempre encontrou terreno fértil e agora capitaliza os votos dos mais jovens, revelando-se cada vez mais ameaçadora. É possível reconhecer entre os personagens das 104 histórias curtas de O Imitador de Vozes figuras que se encaixam nesse nicho ideológico, mas o pessimista Bernhard não particulariza os agentes defensores do credo totalitário. Nessas parábolas existencialistas, em que o inferno é sempre o outro, os que se opõem à dinâmica do Estado acabam vítimas de um sistema que aniquila toda a vontade. É o que acontece no conto Serviço Público, em que o governo da Alemanha, por motivos políticos, transfere um bibliotecário da Universidade de Marburg an der Lahn para uma distante cidade no golfo Pérsico. Conclusão: no Estado, pouco importa a que senhor se pretende servir. Segundo Bernhard, "será sempre o senhor errado". Apesar de curtas e de difícil definição, as histórias de O Imitador de Vozes sintetizam as preocupações e o estilo desse que é um dos grandes renovadores da literatura do século 20. Filho ilegítimo, solitário e tuberculoso, Bernhard passou a juventude na casa dos avós maternos, em Viena, e a vida adulta ao lado de sua "Lebensmensch" (companheira sem laços amorosos), Hedwig Stavianicek. Figura tutelar do escritor, que conheceu num sanatório, a aristocrata Hedwig, 37 anos mais velha que ele, foi a primeira a reconhecer o talento literário de Bernhard, ajudando-o financeiramente para que o autor se dedicasse apenas à escrita. Valeu o apoio: entre as obras-primas do escritor, morto aos 58 anos, estão livros como O Náufrago e Extinção. Como o narrador desse seu último romance, Franz-Josef Murau, Bernhard nutre verdadeiro ódio aos burgueses da Áustria e dispara diatribes e ironia pelas 104 vinhetas que identificam o imediato propósito do conto que dá título ao livro, O Imitador de Vozes. Nele, um inglês de Oxford, armeiro em Berchtesgaden, revela incomum talento para imitar a voz de qualquer pessoa - menos a sua. É evidente o paralelismo da insólita condição do protagonista com a máxima do filósofo vienense Ludwig Wittgenstein: "Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo". A partir daí, nada se pode falar. É loucura, desespero, devaneio. E Bernhard ousa atravessar a fronteira da lógica para ver o que há do outro lado desse irracionalismo - por isso, então, tantos personagens suicidas, loucos, assassinos e filisteus. Tudo neste mundo de hipocrisia, terror e cultura massificada emperra a razão e o autoconhecimento, o que obriga o autor a recorrer a um travestismo vocal - como o personagem de O Imitador de Vozes - para dar voz a esses irracionais. É ao mesmo tempo um gesto paradoxal de desprezo e generosidade. Como Wittgenstein, Bernhard não dissocia linguagem da própria experiência existencial. Misantropo, ele transfere para seus personagens um pouco de suas neuroses - mas também de suas paixões, especialmente a musical, ele que se preparou para ser um grande instrumentista (como os amigos de O Náufrago, colegas de Glenn Gould) e terminou como um grande romancista e dramaturgo, cruzamento de Franz Kafka, Robert Musil e Samuel Beckett. A música, de fato, é o modelo de sua escrita. Há variações tonais, rebeldia dodecafônica, repetição minimalista de temas e, especialmente, fascinação mórbida pela dissonância. No relato Exemplo, que parece tirado do noticiário de jornais populares, um repórter encarregado da cobertura dos tribunais conta como um juiz, após condenar um exportador de carne de vaca, saca um revólver da toga e dispara contra a têmpora esquerda, não sem antes dizer que pretendia com isso instituir um exemplo. Faz lembrar o teatro do absurdo de Ionesco com ecos do camusiano juiz penitente da novela A Queda. Para que a sociedade não caia no abismo, é preciso o sacrifício de um juiz, capaz de dar sentido à lei - e o que parece artificial em Albert Camus é perfeitamente natural em Bernhard. Tudo parece fora de lugar no mundo de ambos. E tanto um como outro só queriam se livrar desse desconforto.

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