Uma jornada louca, mas necessária

Diálogos, encontros e casamentos musicais proporcionados por mais uma edição da Folle Journée merecem gritos de ?bravo!?

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Por João Luiz Sampaio
Atualização:

O solo da soprano, em um crescendo ao qual logo se juntam os demais solistas da Vesperae Solemnes de Confessore; o flerte com a dissonância na lenta introdução do Quarteto nº 19; a melodia ganhando formas, instrumento após instrumento, após a introdução do piano no Quinteto para Sopros K 452; a recapitulação do tema do primeiro movimento na entrada do piano de Arnaldo Cohen no Concerto nº 17; o célebre movimento final da Sonata Alla Turca, nas mãos cheias de bossa do francês Jean-Claude Pennetier; o passeio do drama ao brilho no recital de Eduardo Monteiro. Foram momentos como esses, recortados de uma maratona de 38 concertos em pouco mais de quatro dias, que fizeram valer a pena a edição deste ano da Rio Folle Journée, inteiramente dedicada a Mozart. Há duas maneiras de encarar a extensa grade de programação da Folle Journée. Você pode escolher aquele punhado de concertos que mais lhe interessam e ater-se a eles; ou, então, prender a respiração e enfiar-se de vez na correnteza de concertos, indo de um a outro. O risco, claro, é não assimilar tudo - e oito horas de música depois, acredite, você não vai mais assimilar tudo. No entanto, os recortes provocam associações das mais interessantes. Um concerto para piano, por exemplo, oferece de alguma forma um outro olhar para um quinteto para piano e sopros, ainda mais quando você se dá conta de que foram escritos na mesma época; e o que dizer, então, da conjunção do lamento religioso de uma peça como a Missa Brevis, com uma abertura sinuosa e sensual como a da ópera Cosi Fan Tutte ou ainda dos acordes trágicos se transformando em brincadeiras sonoras na abertura de Don Giovanni, aquele mesmo que acaba a caminho do inferno depois de uma vida de conquistas? Há Mozart para todos os gostos e talvez o formato da Folle Journée funcione particularmente bem para sua obra. No mais, o clima frenético, de um concerto para outro, faz parte da proposta. Há algumas possíveis ressalvas - fizeram falta trechos de suas óperas, mesmo que em recitais com piano; teria sido interessante poder ouvir mais de seus concertos para piano e pelo menos duas ou três outras sinfonias fundamentais de seu catálogo. Mas, de modo geral, as promessas da programação se concretizaram. O grupo de artistas franceses trazido pelo evento está acostumado a trabalhar em conjunto, assumindo diversas formações. Não por acaso, soaram tão bem recitais de câmara de intérpretes como o clarinetista Roman Guyot e os pianistas Christian Ivaldi e Anne Queffélec. Mas destaques mesmo foram o pianista Jean-Claude Pennetier, com leituras saborosas das sonatas para piano, e o violista Gerard Caussé, lenda de seu instrumento, que fez um memorável Quinteto de Cordas n.º 3, no início da noite de sábado, ao lado do Quarteto Ysaye. O quarteto, aliás, é um fenômeno. No ano passado, fizeram aqui a integral das peças escritas por Beethoven para o gênero; agora, Mozart. É impressionante o diálogo musical entre os quatros instrumentistas, sua atenção ao estilo e a maneira como, dividindo-se e recebendo a companhia de outros solistas, criam naturalmente novas formações, em que se mostram igualmente à vontade. Em tempo: o Ysaye será um dos conjuntos residentes da edição deste ano do Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. Entre os brasileiros, destaque para o trio formado pela pianista Fany Solter, o violinista Daniel Guedes e o violoncelista Fábio Presgrave; para o pianista Eduardo Monteiro, responsável por um dos principais recitais da série das sonatas; para a Filarmônica de Minas Gerais que, sob a regência de Fábio Mechetti, ofereceu leituras repletas de contrastes de Mozart, ora enérgico, ora tenso, ora reflexivo. Um capítulo à parte foi Calíope, dirigido pelo maestro Júlio Moretzsohn. Eles são a alma da música coral carioca e ofereceram por aqui dois concertos, um dedicado a investigar as influências de Mozart na música brasileira e outro com duas peças do compositor: a Missa Brevis e as Vesperae Solemne de Confessore. Moretzsohn nos deu delas leituras inspiradas, atentas às dinâmicas e à criação de momentos musicais de rara beleza, apoiados na qualidade de solistas como a soprano Livia Dias e o contratenor Paulo Mestre. A princípio, os organizadores haviam previsto para este ano a realização de 55 concertos, significativo crescimento com relação ao ano passado. Não contavam com a crise e a dificuldade que acabou gerando na busca por patrocínios. Mas o balanço final é positivo - a Folle Journée conseguiu se manter como marco importante do calendário musical brasileiro. Para o ano que vem, fala-se em uma Folle Journée dedicada inteiramente a Chopin, por conta de seu bicentenário de nascimento. E a loucura recomeça.

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