Uma imagem que dê conta do enigma humano

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Por Miriam Chnaiderman
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A primeira cena impressiona: uma praia com o mar ao longe, apesar do movimento das ondas, a imobilidade da câmera invade a alma. Paisagem ou cenário? Alguém uniformizado (Ravel) entra carregando um homem vestido com um escafandro e o imobiliza na areia. O "funcionário" retira-se. Ao longe, no horizonte, um pontinho preto indefinível vai se aproximando. Aos poucos, vemos tratar-se de um anão, totalmente nu, com algumas amarras ao redor de seu corpo. O anão pula para cima do homem vestido de escafandro e dá risadas cruéis. Ainda não sabemos do que se trata. Sabemos apenas que estamos assistindo a Filmefobia de Kiko Goifman. Deduzimos, então, que alguém está em um duro enfrentamento com o objeto de sua fobia. Daqui até o final, os fóbicos exibirão seu terror em ambientes escuros e fechados, rodeados de estranhas máquinas. Enfrentamento com objetos do medo ou objetos fetichizados? Todos os fóbicos são imobilizados, sem possibilidade de fuga. Apenas a equipe técnica se move. Cada um com sua função. Um filme do filme, numa sobreposição de cenas que falam de outras cenas, mas que se esgotam em uma estranha irrealidade que se contrapõe à concretude do objeto fóbico. A fobia é representada ou vivida? Essa dúvida permeia e introduz o estranhamente familiar (e temido). Como espectadores, vamos oscilando entre a risada e o terror. Assim é o primeiro longa de ficção de Kiko Goifman. Que não deixa de ser um documentário ficcionado ou uma ficção documentada. O mote do filme é a busca que um diretor de cinema faz - e o diretor é Jean-Claude Bernardet - da imagem verdadeira. E, afirma Jean-Claude: a única imagem verdadeira é a de um fóbico diante de sua fobia. Busca de um humano essencial despido de disfarces. Mas tudo é artificioso, tudo é irreal. A começar pelas máquinas que são personagens essenciais, determinando sobre a corporalidade. Jean-Claude só se locomove em cena em uma cadeira de rodas. Cena filmada e fora de cena filmada, o que é filme e o que não é filme, tudo é filme, tudo é representação. Até mesmo a fobia. No filme do filme, tudo é discutido por seus cocriadores, Hilton Lacerda (roteirista), Lívio Tragtenberg (músico) e Cris Bierrenbach (artista plástica e inventora das máquinas). Todos são sujeitos - personagens, pessoas, termos utilizados por Jean-Claude ao denominar como "autoficção" o trabalho que fez. Questões éticas, limites, teorias, tudo está em questão. Todos sabem que não há imagem verdadeira, mas, fingem não saber. Sabem que a arte e o sintoma fóbico buscam um real inomeável, o que só pode fracassar. Nos filmes de Kiko Goifman, experimentar, ousar, vai junto com um enfrentamento daquilo que constitui o enigma humano. Como em 33, documentário em que busca sua mãe biológica, Kiko é personagem, enfrenta seu medo de sangue. Desmaia em cena. Kiko é ele mesmo e é um outro. Explicita assim nossa alienação constituinte: todos nos constituímos a partir de um outro que nos olha. Nesse ir e vir, vemos personagens que podem ser fóbicos ou atores fóbicos ou fóbicos representados por atores. Desvela-se assim um mundo em que a realidade virou pura imagem ou a imagem virou nossa realidade. Afinal, o reality show mais atroz é aquele que vivemos amedrontados dentro das grades de segurança de nossos apartamentos cercados de câmeras por todos os lados. Miriam Chnaiderman é documentarista, psicanalista e ensaísta

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