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Uma esperança no meio das trevas

Em Os Possessos, Antonio Abujamra transforma o enredo sombrio de Dostoievski na possibilidade de um futuro melhor

Por Jefferson Del Rios
Atualização:

Os Possessos, o espetáculo, a partir de Dostoievski, é uma sucessão de revoluções perdidas em desordem moral, assassinatos, perversões aristocráticas e ações erráticas de multidões. É também uma revolução pessoal do encenador Antonio Abujamra. Se nada deu certo na Rússia, a vitória acontece no Teatro da Funarte que Abujamra transformou no seu Instituto Smolny (QG da Revolução de Outubro comandada por Lenin em 1917). Convidado pela Fundação Nacional das Artes, deu início ao Centro de Aperfeiçoamento Teatral reunindo praticantes de artes cênicas de todo País escolhidos por seleção. Mais de 50 aprovados entre centenas de inscritos receberam bolsas da instituição. O grupo atual acolhe intérpretes de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, a Pernambuco, Alagoas e Ceará. Em outras circunstâncias, seria difícil a esses profissionais vencerem a distâncias, e as dificuldades financeiras que os separam dos seus Estados de origem e o que se faz entre São Paulo e o Rio de Janeiro. Projeto - que inclui também paulistas e cariocas - visa a aperfeiçoar intérpretes, cenógrafos, figurinistas, iluminadores, autores de trilhas sonoras e sonoplastas e produtores teatrais. Espera-se que sejam multiplicadores desses conhecimentos nas cidades de onde vieram. As apresentações são gratuitas. Dentro do seu sistema de quebrar fantasias inócuas para transmitir 50 anos de conhecimento de vida teatral, Abujamra usou o anticlímax artístico e existencial para desmontar ilusões românticas, devaneios de glória e vaidades sem nexo que podem estragar um artista. Ele parece gostar do lema de Alfred Jarry: "Não haveremos demolido tudo se não demolirmos inclusive as ruínas." Em entrevista recente, disse: "Fizemos um trabalho com esda garotada fundamentalmente no sentido de ter uma crítica do País e da vida. A maior dificuldade foi fazê-los ter disciplina interior." A primeira prova desse esforço nota-se na fala dos participantes com a eliminação dos sotaques regionais. Essa visão do mundo está na sua adaptação de Os Possessos, de Dostoievski obra que intercambia indignação social com metafísica. Abujamra não teve dúvidas em interferir no original com citações de Bertolt Brecht, Nietzche e dele mesmo. A representação é acelerada como se o comandante, ao exigir tanto dos comandados, tenha concedido algo à pressa da juventude. O elenco é sólido e coeso. São bons profissionais. Personagem de si mesmo, Fiodor Dostoievski viveu tragicamente, como o seu país. Tem uma biografia paralela à da Rússia do século 19, pré-industrial e com estruturas econômicas e mentalidade medievais. A vastidão do território correspondia à da miséria da maioria da população e à prepotência da aristocracia suicida que abriria caminho para os bolcheviques implantarem um regime ditatorial de 70 anos, falsamente comunista no sentido igualitário. É fácil notar semelhanças entre aqueles acontecimentos e as veias abertas da América Latina. A Rússia de Dostoievski, e em seguida a União Soviética, sempre estiveram debaixo do chicote. A nobreza abusava do seu privilégio total de classe e, no comunismo, a verdade e o mando emanavam, a ferro e fogo, do "núcleo dirigente" encastelado no Kremlin. Com habilidade para não ser panfletário, Abujamra faz sutil alusão à atualidade brasileira. Os Possessos tem uma aparente contradição. Os personagens são sórdidos, derrotados, conspiradores que traem, mas na montagem são jovens e a direção deu-lhes um toque de simpatia. Nada é realmente sombrio e demoníaco. Algo brilha neles, nos figurinos e nos deslocamentos cênicos precisos. O espectador atento notará, contudo, que do fundo dessa loucura humana e histórica cintila o olhar de um Dostoievski dividido entre ideais do socialismo utópico aprendido com os franceses que admirava, como Victor Hugo, e sua religiosidade difusa. O escritor sacrificou parte de sua vida em militância política acreditando que o povo, por si só, é bom, o que lhe custou nove anos de prisões, uma delas nas desumanas condições de vida na Sibéria descritas em Recordação da Casa dos Mortos. O espetáculo, numa outra encantadora contradição, flagra Abujamra entre o subjetivo e o combatente. O painel dominante no cenário é um quadro de Marc Chagall, que participou da administração soviética como "comissário do povo para belas-artes", mas, em 1922, ao pressentir algo errado no regime, mudou-se para Paris. Estava certo (Foi o mesmo ano em que Lenin teve o derrame que o levaria à morte e Stalin, ao poder). Quem ficou, como Meyerhold, um gigante do teatro moderno, foi morto. O espetáculo termina com a A Internacional, o belíssimo hino de todas as revoluções. Ironia ou esperança, o que está no palco mostra que o cético Abujamra ganhou a sua. Serviço Os Possessos. 80 min. 14 anos. Funarte - Sala Guiomar Novaes (140 lugs.). Alameda Nothmann, 1.058, Campos Elísios, tel. 3662-5177. 5.ª a sáb., 20 h; dom., 18 h. Grátis - ingressos uma hora antes. Até 31/8

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