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Uma descida radical aos porões da sociedade

Filme bem narrado, revela uma França dos quarteirões populares de Marselha, sem o charme de Paris

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Lady Jane pode ser visto como filme sobre o automatismo da vingança. Trágico automatismo, que leva à desgraça várias gerações de envolvidos. As dívidas de sangue passam de pai para filho, como herança, conta a ser debitada, e, em aparência, não existe saída para quem se vê envolvido nessa roda da desfortuna. ''Porém, alguém tem de parar um dia'', diz um personagem nessa história de Robert Guédiguian, mais uma vez passada em sua região, Marselha, no sul da França. Assista ao trailer de Lady Jane Foi lá que ele filmou sua obra talvez mais incisiva - A Cidade Está Tranqüila, cujo tom e circunstâncias convidam o espectador a tomar o título como ironia. Tudo o que não existe na Marselha de Guédiguian é serenidade. Pelo contrário. As pessoas são tensas, empenhadas em sobreviver em condições difíceis, levadas, por si mesmas ou pelas circunstâncias (provavelmente por ambas), a se entredevorar. Dito isso, pode-se acrescentar que Lady Jane tem o tom de um policial à francesa, como os de Melville. Há nele um crime atual, que remete a crimes anteriores, todos mal resolvidos. Mas, é, também, um policial torto, pois nele não entra, senão de maneira indireta, a figura do investigador, seja um tira oficial ou um detetive particular. Lady Jane adota, com muita ênfase, o ponto de vista, digamos assim, marginal. Ariane Ascaride é Muriel, dona de uma boutique. No começo do filme a vemos aflita, atendendo sofregamente o celular. Aos poucos, se nota que alguma coisa está errada - ela está administrando o que parece ser um seqüestro. Quem pode ajudá-la? Talvez dois amigos. François (Jean-Pierre Darroussin), que repara barcos no cais, e René (Gérard Meylan), proprietário de uma boate de strip-tease. Aos poucos, o espectador desconfia que a dupla flerta com uma certa marginalidade. Talvez a trinca. Lady Jane é o nome da loja de Muriel. É tirada da canção dos Stones, que Muriel, François e René curtiam no tempo de juventude, quando andavam sempre juntos. Essas camadas no tempo são introduzidas em ordem assimétrica. Temos o tempo presente, em que o seqüestro se desenvolve. Mas só o iremos compreender no final, quando então sua origem, que já era clara para os protagonistas, também será cristalina para o espectador. Mas esse é apenas o enredo, tenso e bem narrado, diga-se de passagem. O importante é o que vai sendo incorporado a ele de maneira em aparência lateral: todo um modo de vida de uma certa França que não se parece em nada com o glamour de Paris. Muito pelo contrário. Essa França de Guédiguian passa pelos quarteirões populares de Marselha, lá de onde saem tipos como René, François e Muriel. Ele escolhe atores que têm a cara desse povão francês, dessa elegância suburbana de quem se deu bem na vida, talvez por meio de métodos pouco ortodoxos. O filme impregna-se da vocação documental de Guédiguian. Aquela disposição de entrar em contato direto com a carne da vida, por assim dizer, sem qualquer intenção de ser um observador neutro, que não se compromete e não sofre com aquilo que é exposto. Há dor e há paixão em sua maneira de narrar. Há compaixão por personagens que talvez não sejam exatamente exemplos morais para a sociedade, mas se mostram perdidamente humanos no que fazem. A conclusão sobre a inutilidade da vingança pode vir de um moralista ou de um vigarista. Não importa. Ela é forte do mesmo jeito, porque ambos pertencem à mesma frágil espécie humana. Serviço Lady Jane (França/2008, 104 min.) - Drama. Estréia amanhã.Cotação: Ótimo

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