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Uma arte que ensina a tolerar as contradições

Depois da criação da EAD, fica muito claro que teatro era mais do que ofício para quem fazia e diversão para quem assistia

Por Mariangela Alves de Lima
Atualização:

Duas antipatias se manifestam de modo recorrente nos escritos e depoimentos de Alfredo Mesquita. No mais, foi um intelectual avesso a atritos de opinião porque a arte o ensinara a tolerar contradições. A primeira recobre todas as reconstituições da história do teatro em que a primazia da modernização da cena brasileira adota como marco zero o espetáculo Vestido de Noiva encenado em 1943 pelo grupo os Comediantes. Nisso, divergia de Décio de Almeida Prado, amigo e parceiro na aventura da EAD, porque estava certo de que a modernização do teatro paulista não era uma simples emulação do feito carioca. Outra implicância endereça-se, de modo difuso, ao ''''grã-finismo diletante'''', que estabelece com a arte um namorico fugaz, de juventude, e depois vai fazer outras coisas. A primeira destas duas aversões tem, talvez, raiz funda na personalidade. Tanto a atuação como fundador e mantenedor de instituição de ensino e mestre quanto a produção ficcional indicam o sentimento nativista que, no quadro geral da cultura do início do século 20, impulsionava as investigações regionalistas. Embora a cultura literária francesa de vanguarda fosse o pão de cada dia dos jovens bem-educados, a capital da República conservara a vantagem indiscutível dos museus, dos teatros e das formações musicais estáveis. Companhias teatrais mais importantes sentavam praça no Rio de Janeiro e, uma vez esgotado o público de uma temporada, excursionavam até São Paulo. Trabalhavam muitas vezes com as reservas menos preparadas dos elencos e com o saldo da produção material do espetáculo. ''''Dentro dessas companhias, grassava a miséria'''', diria Alfredo Mesquita, rememorando as três primeiras décadas do século. Tudo estava por fazer na cena paulistana, desde a formação de elencos com preparo técnico e intelectual para um repertório qualificado até os edifícios e a cenotécnica. A idéia de criar um repertório de qualidade literária, encená-lo sob a orientação de um diretor e com um elenco disciplinado estava já embrionária em um espetáculo inspirado na cultura agrária paulistana e apresentado em 1936 com o concurso de um artista plástico de renome e uma compositora igualmente afamada responsabilizando-se pelas canções. Pode-se discordar do teor inovador, no plano temático, de uma ''''fantasia'''' cujo tema é ''''a velha hospitalidade brasileira/e tão paulista de outros tempos/renascendo/vai aliando o modernismo do presente/às coisas boas de um passado/Em tantas sombras envolvido''''. De qualquer modo, do ponto de vista cronológico, tinha razão o autor, porque o grupo carioca é de formação posterior. É um comentário de Mário de Andrade, contudo, que outorga a chancela de vanguarda a esse experimento folclorista na superfície: ''''... É um espetáculo verdadeiro, teatro do mais legítimo, em que todas as artes da plástica e do movimento vêm depor seu desejo de felicidade. A dança, a cor, as formas, a música têm aqui tanta importância como a frase.'''' Quanto à restrição feita aos grã-finos, a resposta foi o contrapeso arrasador da Escola de Arte Dramática. Na mesma medida em que deplorava o mero intuito comercial do teatro profissional dos primeiros anos do século, a experiência levou-o a uma decidida opção pelo profissionalismo. Seus primeiros companheiros na aventura teatral, jovens universitários abastados, se entusiasmavam a ponto de participar de uma ou outra representação, mas não desejavam viver da arte e ainda menos para a arte. Nas companhias francesas renovadas pelo idealismo e pela prática de Jacques Copeau, a exigência de um compromisso de ordem moral com a arte do teatro pesava tanto quanto o respeito ao autor dramático e à ordenação intelectual do encenador. Essa disciplina superior, que brota da aceitação de uma poética, só poderia vingar entre pessoas que se dedicassem inteiramente à arte. Astutamente, a Escola de Arte Dramática abriu suas portas oferecendo como única opção o período noturno. Podiam freqüentá-la pessoas que trabalhavam durante o dia para ganhar a vida. Não iriam perder tempo nos bancos escolares os diletantes que faziam concorrer em raias paralelas o aprendizado e o coquetel. Diga-se de passagem, que essa proposta monástica serviu tanto à classe trabalhadora quanto a alguns ex-grã-finos convertidos de modo irrevogável ao sacerdócio teatral. As idéias, certamente, estavam no ar porque em poucos anos proliferaram conjuntos teatrais com a mesma cartilha. Mas, foi Alfredo Mesquita quem, com autoridade legitimada pela crença de que o bom teatro expressa o ápice da civilização, atraiu para o ensino e para o palco uma geração de brilho intelectual singular. Não fosse o canto de sereia da escola votiva, a um só tempo sério e ardente, grandes mestres que se dedicaram ao teatro teriam permanecido nas disciplinas de maior tradição das ciências humanas. Também é verdade que, não contente com essa aglutinação de cérebros paulistas em torno da pedagogia do ator, desfalcou parte do contingente de outros Estados e países. Depois da ''''EAD do Dr. Alfredo'''' - seus alunos sempre o trataram com reverência e um certo temor - ficou muito claro que teatro era mais do que ofício para quem fazia e diversão para quem assistia. Estavam lá na Escola de Arte Dramática, aprendendo a ensinar teatro, as pessoas mais estudiosas, mais sérias e mais originais da messe cultural paulista. Trabalhando por amor à arte, sem dúvida, mas também respondendo ao apelo do magnético idealizador da instituição.

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