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Uma academia na madrugada

Por Ignácio de Loyola Brandão
Atualização:

Cássio cresceu como a geração de academias, praticando fitness, pilates e todas as modalidades existentes de filosofias e conceitos destinados a preservar o físico, o condicionamento, a saúde, o corpo moldado, bombado. Boa gente o Cássio com um único inconveniente. Vai a balada hoje? Não, amanhã tenho academia bem cedo. Vai ao velório do Dionisio? Não, é bem na hora da academia. Vai à manifestação da nossa categoria pelo aumento do bônus? Não vai dar, é bem na hora da academia! Vamos ao casamento da Berenice com o João? Não posso, começo uma série de exercícios com um trainer americano. Assim, a vida foi passando e o Cássio na academia, rejubilando-se com cada novo aparelho inventado e importado, cada exercício criado por uma celebridade desse mundo todo particular, dessa religião dos tempos atuais. Quanto anos você me dá? Sempre é a pergunta recorrente do Cássio, minutos depois de ter sido apresentado a uma pessoa. Ele dá um jeito de conduzir a conversação para esse lado. - 28, no máximo, diz o sujeito. - Tente uma vez mais. - Para cima ou para baixo? - Para cima! Como as pessoas são gentis, vão apalpando, uma pergunta dessas sempre é saia-justa. - Está bem. Mas não vá me dizer que tem mais de 31! - Errou por 10. - Não me diga que tem 21? - Pode até parecer, sei disso. Mas tenho 41. - Não acredito mesmo! 41. A história de Cássio é diferente de uma que ouvi anos atrás no Rio de Janeiro. Um grupo de fisicultores andava pela praia, observando as pessoas que entravam no mar, tomavam sol, jogavam vôlei, futebol, frescobol, esbanjando saúde. De repente, deram com um velhinho enrugado, cabelos brancos que, acabada uma partida de vôlei, deu um mergulho, pegou uma raquete, jogou meia hora de frescobol, correu pela praia, bateu uma bola, lépido. Não se contiveram, foram até ele. - O senhor é o maior exemplo de pessoa saudável, disposta, bem de vida, de bem com a vida. E nessa idade! Deve ter orgulho de fazer tudo isso nessa idade. - Pois tenho mesmo. - E pode nos dizer a sua idade? - Quanto me dão? - Pelos cabelos, jeito da pele, essas ruguinhas eu daria 66. Outro disse: - Não, não! 60. - Ninguém acertou. Tenho 23 anos. No entanto, a vida de Cássio mudou de uma semana para a outra com a crise econômica mundial. A empresa em que ele trabalhava fechou, ele se viu desempregado, sem indenização, sem fundo de garantia (porque os donos fugiram para uma ilha fiscal) e os investimentos que tinha no banco dependiam das ações da bolsa, tudo despencou, em meses ele se viu na sarjeta. Contornou tudo, menos a academia, que proibiu sua entrada no segundo mês de inadimplência. Cássio mergulhou em desespero. Somente quem faz exercícios há tantos anos sabe o que significa a abstinência, o passar pela frente da academia e ver pelas janelas (repararam que as academias parecem showroom, todo mundo fazendo exercícios à vista do público?) o pessoal se exercitando, provocava dores e angústias. "Será que inventaram um novo exercício? Terá um aparelho de última geração?" Pensava ele com fixação, sonhando, tendo pesadelos. Ele nos contava dessa tragédia. Não adiantava correr por conta própria, gostava da esteira. Fazer abdominais sozinho? E os ruídos da academia, aquelas músicas típicas, a voz dos instrutores, a atmosfera que excitava? Cássio tornou-se infeliz. Certa madrugada, estávamos em um bar, comemorando o Natal, ainda que o Cássio, nosso convidado, dissesse não ter nada a comemorar. Então ouvimos um barulho característico e gritos, bater de latas. Vimos um ritual que acontece todas as noites e madrugadas pela cidade. Feriado ou não, com chuva e frio ou não. Um pensamento comum ocorreu e circulou pelas mentes como telepatia nos entreolhamos. Gritamos: - Cássio, você está salvo. - Salvo? Como? Por quê? - Encontramos a solução. Você vai fazer ginástica e ainda ganhar salário. Está aí uma proposta para o início do ano. - Qual é o milagre? - Está à sua frente. - À minha frente estão os lixeiros. - Exato. Olhe como trabalham. É coisa para você. Vamos te arranjar esse emprego. O caminhão do lixo corria e os lixeiros em uniformes laranja corriam atrás, apanhando sacos de todos os tamanhos, erguendo, levando até o caminhão, que nunca para, é infernal. Às vezes, o veículo acelera. Fazer exercícios e ainda ganhar. O que correm todas as noites, o preparo que precisam ter, o peso que carregam os lixeiros. Sem um respiro, um segundo de descanso. Precisam usar aparelhos, ferros, alteres? Que nada! Sacos de lixo. Devem ter músculos e mais músculos. De correr, correr, correr, gritar, apanhar saco, se mandar atrás do caminhão. Pergunte a um lixeiro se algum dia ele frequentou academia. Para quê? A academia é o caminhão e o personal é o motorista que anda, corre, acelera, puxa por todo mundo. - Isso não é vida. - É. O pior é que é. E você, Cássio, reclama...

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