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Um território em que a cor vira forma

A pintora Renata Tassinari lança livro e abre mostra com trabalhos em que campos cromáticos desafiam olhar do espectador

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Certa vez perguntaram ao pintor Brice Marden o que ele sentia quando as pessoas diziam que seu trabalho era bonito. Surpreendendo seu interlocutor, Marden respondeu que a beleza poderia ser ofensiva, por estar diretamente relacionada à harmonia. Ter usado no passado uma paleta monocromática, explicou Marden, era uma limitação. Ele não queria tocar apenas alguns acordes agradáveis. Queria compor fugas complexas, dar conta de traduzir sentimentos contraditórios - e isso só uma paleta policromática poder fazer. De certa forma, foi o que também aconteceu com a pintora paulista Renata Tassinari, como comprova a exposição Entre Cores, a partir de hoje, no Estúdo Buck, onde também lança um livro que resume sua carreira, iniciada em 1985 no MAM de São Paulo. Como as pinturas de Brice Marden, as de Renata Tassinari passaram por um processo de depuração nesses 24 anos. Nascida em plena ebulição da onda neoexpressionista, a pintora se formou dentro da figuração e da pintura matérica para logo buscar outro caminho no abstracionismo geométrico. No final dos anos 1980, essa pintura sugeria ainda certa filiação a movimentos pictóricos americanos - especialmente ao expressionismo abstrato e ao movimento figurativo de Bay Area, vale dizer, Richard Diebenkorn e Elmer Bischoff. Nos anos 1990, o uso da encáustica (pigmento e cera diluídos em terebintina) adensou os territórios cromáticos, mas, como lembra o crítico Rodrigo Naves, as cores se confundiam com o movimento da luz que penetrava na superfície de cera e Renata, então, abandonou a técnica - Brice Marden também deixou de usá-la, mas por razões diferentes, ligadas à degradação do material. A evocação dos nomes de Diebenkorn e Marden não é casual. Ambos foram fortemente marcados pelos campos cromáticos de Matisse - valendo o mesmo para Renata Tassinari. Se o pintor francês subverteu o conceito do ?cloisonnisme?, quebrando o vitral gótico para que forma e cor se confundissem num único campo de cor, Renata Tassinari, na mostra atual, atualiza Matisse ao afirmar não só seu cromatismo antinaturalista como a busca de uma forma pura. Assim, o diálogo entre as superfícies chapadas de óleo e tinta acrílica e as molduras de acrílico das pinturas atuais se dá na confluência entre o artesanato da cor e sua industrialização. Em certo sentido, o que essa exposição faz pela arte brasileira é levar adiante as lições do construtivismo brasileiro às novas gerações. Como no "cubocor" da fase neoconcreta de Aluísio Carvão (1920-2001), as formas geométricas de Renata Tassinari são estruturas elementares em que a pintora revela ser a interação entre as cores uma estratégia sutil para tomar o território da forma. Elas desenvolvem uma relação mimética com essas estruturas até conquistarem seu espaço. O crítico Lorenzo Mammì, no livro, observa que a organização dos campos de cor nos trabalhos da artista, ao contrário da pintura de Eduardo Sued - serial, em que as cores são intercambiáveis - admite centros tonais, "momentos de plenitude". Mammì refere-se a pinturas realizadas há dez anos, quando a artista introduz o branco em suas telas. Nas atuais, essa mesma cor também marca presença como região de luz, mas é uma presença discreta, como no óleo Vermelho Vertical (2008), um dos pontos altos da exposição, em que Renata presta tributo aos objetos ativos de Willys de Castro - que, aliás, completam meio século. É inútil buscar o centro nesses trabalhos monocromáticos. O mesmo vale para as pinturas da exposição, que obrigam os olhos a vagar pelo território da cor em busca de um porto seguro. Eles, confirmando a teoria gestáltica , vão buscar repouso na linha lateral branca da moldura acrílica, que completa a figura e destaca o quadrado central. Nesse como nos outros trabalhos da exposição, a artista usa chapas de acrílico pintadas por trás. Elas refletem ainda mais a luz, a ponto de eclipsar a verdadeira natureza da cor, camuflada na transparência da chapa, que cria um espaço negativo. Isso fica evidente na tela Parabrisa Azul (2007). Aparentemente um díptico, a pintura é um embate violento entre o óleo azul da direita e a moldura acrílica preta - e isso não só pela perenidade do polímero versus a degradação do óleo. A associação imediata é a fase final da carreira de Rothko, em que as imagens bipartidas deixam o espectador desorientado entre o espaço negro da noite e o impenetrável interior lítico da terra, sem o mínimo vestígio da luz do sol na superfície da tela. Renata Tassinari usa o azul como saída desse espaço não-habitável, depressivo, de Rothko - um de seus mestres ao lado de Matisse. Do preto emerge um azul que dá acesso não a um espaço metafísico, mas a um território de luz do qual não se quer sair mais. E fica bem aqui, na Terra.

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