Um rótulo que ainda incomoda

Marginal é conceito de época que muitos autores prefeririam substituir por poético ou experimental

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Na primeira vez que tentou contactar Júlio Bressane para falar sobre cinema marginal, Eugênio Puppo levou um telefonada na cara. "Não sou marginal", retrucou o diretor do outro lado da linha e - bam! - desligou. Depois disso, as relações ficaram mais amistosas e hoje eles conversam civilizadamente, mas o incidente dá uma idéia da reação que a etiqueta provoca nos ex-marginais. A maioria dos autores que se destacaram sob essa bandeira preferem outras definições - cinema experimental, poético. Mas o rótulo forte é cinema ?marginal?. É assim, como ?cinema marginal brasileiro?, que a Lume Filmes e a Heco Produções lançam na próxima semana - dia 2 - uma coleção importantíssima, que vai mapear uma era fundamental do cinema do País. A primeira leva de lançamentos constitui-se de quatro volumes - incluindo os filmes, extras e livreto com análise dos títulos selecionados e filmografia dos diretores. O preço médio é R$ 39,90 (cada DVD). No total, a coleção prevê 12 volumes, mas Puppo ainda espera que sejam 13, ou 14. O 13.º, número cabalístico, poderá ser O Despertar da Besta, de José Mojica Marins, na versão restaurada. Os primeiros a chegar às lojas são Bang Bang, Sem Essa Aranha, Os Monstros de Babaloo e Meteorango Kid. Cinéfilo de carteirinha sabe quem são os autores - Andrea Tonacci, que na terça-feira recebe o troféu da APCA, Associação Paulista dos Críticos de Artes, pela realização de Serras da Desordem, que dividiu com Linha de Passe as honras de ter sido o melhor filme brasileiro de 2008; Rogério Sganzerla, Elyseu Visconti e André Luiz Oliveira. Traçando o panorama do cinema marginal brasileiro, Arthur Autran observa no livreto que ele se caracteriza por ser um conjunto heterogêneo de filmes realizados entre o final dos anos 1960 até meados da década seguinte. Em outro texto, No Meio da Tempestade, Inácio Araújo diz que os filmes da coleção não caracterizam um estilo nem uma corrente, mas fornecem um documento amplo sobre uma época - a ditadura - e um estado de espírito. Eugênio Puppo sabe que o rótulo de cinema marginal é visto com desconfiança e até desprezo pela maioria dos realizadores desses filmes. Outras definições, cinema de poesia, underground (ou udigrudi), soariam bem melhor aos ouvidos de diretores que continuam a fazer filmes admiráveis (Tonacci, Carlos Reichenbach). Mas o rótulo Cinema Marginal - e aqui ele ganha maiúscula -- é inegavelmente um marco histórico do cinema do País e merece ser recuperado e revisitado. A coleção culmina um sonho que começou há quase dez anos, quando Puppo começou a mapear a produção marginal em ciclos e publicações, e inicia uma parceria entre a Lume e a Heco. A Lume, de Frederico Machado, vem se definindo como uma distribuidora de DVDs de filmes de arte. No mercado brasileiro, atualmente, subsistem a Versátil e ela. Veio de Machado a abordagem a Eugênio Puppo, propondo uma parceria. Puppo observou que a Lume lançava produções importantes do cinema estrangeiro, mas nada da produção nacional. O selo Cinema Marginal Brasileiro surgiu dessa constatação. Para provar que o rótulo é malvisto, e não só pelos autores, a Lume e a Herco estão bancando a produção. São empresas pequenas e o investimento é de risco - Puppo pede que não seja divulgado. Cada lançamento terá 1.000 unidades num primeiro momento. Só numa eventual segunda tiragem, que eles esperam que aconteça, a coleção poderá começar a ser rentável. O sonho de cinéfilo, de qualquer maneira, está realizado. Como provocação, o repórter pede a Puppo que selecione o filme capaz de representar todo o Cinema Marginal, aquele que ele levaria para a ilha deserta, em caso de cataclismo, na certeza de estar salvando um patrimônio artístico. Um só não chega, ele retruca. Pelo menos três - A Margem, de Ozualdo Candeias, Sem Essa Aranha e o inefável Bang Bang. Quem assistir hoje ao clássico de Tonacci - parece um paradoxo superpor esse rótulo (clássico) ao outro (marginal), mas um vem do reconhecimento de sua importância e o outro pela especificidade das condições em que foi produzido e exibido, no momento histórico em que isso ocorreu -, talvez não saiba ou não tenha a mesma emoção, mas Bang Bang foi o filme da revelação para muita gente em 1971, quando Glauber Rocha ainda não havia transformado o underground brasileiro em udigrudi, numa brincadeira que mais de um dos autores que praticavam aquele cinema também considerou ?maldosa?. A foto da capa de hoje do Caderno 2 é de Bang Bang. A dança da atriz e bailarina Jura Otero, que virou psicanalista reichiana, é uma transgressão que Carlos Reichenbach recriou num plano famoso de Alma Corsária, de 1994. Os três bandidos do filme de Tonacci são transgressores - de regras sociais e cinematográficas -, mas o diretor diz que isso não era intencional. "Saiu assim como expressão do sentimento de raiva, de impotência, que eu, muito jovem, experimentava na época." E hoje? Tonacci compara o personagem de Paulo César Pereio ao índio, Carapiru, de Serras da Desordem. "Pereio era o Carapiru de 1971", ele diz.

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