Um rei secreto

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Por Verissimo
Atualização:

O amor de Hannah Arendt por Martin Heidegger, que perdurou, de uma forma ou outra, até depois da revelação do envolvimento dele com o nazismo, é um mistério que ainda rende interpretações e especulações. Heidegger não foi apenas simpatizante do nazismo. Colaborou com o regime, se filiou ao partido e, como reitor da universidade de Freiburg, perseguiu professores que não se alinhavam com os novos tempos. Enquanto isso Hannah sofria todas as consequências de ser judia na Alemanha da época, sendo forçada a se exilar com o triunfo do nazismo e a ascensão de Hitler em 1933. Mas ela nunca condenou Heidegger, de quem fora aluna e amante, e sempre insistiu que sua vida pessoal nada tinha a ver com suas ideias políticas, e não faltou quem visse repetidas justificativas disfarçadas da atuação de Heidegger e da sua própria tolerância com ele nos seus escritos, inclusive no famoso livro sobre o julgamento de Adolf Eichmann em Israel em que ela fala na "banalidade do Mal" e, por inferência, perdoa todos os vitimados pela História, inclusive os bandidos. Explicações rudes e machistas para a paixão persistente de Hannah apesar de tudo, como a de que a primeira experiência sexual é a que marca a mulher mais fundo, não cabem no caso. A melhor explicação talvez esteja nas palavras que ela escreveu para uma homenagem pelos 80 anos de Heidegger e que li numa New Yorker recente. Lembrando as suas razões para se matricular nas aulas de Heidegger, como tentavam fazer todos os estudantes de filosofia mais ambiciosos de então, ela conta que naquele tempo pouco mais do que o nome dele era conhecido, "mas o nome corria por toda a Alemanha como o rumor de um rei secreto". O rumor de um rei secreto. Um rei para poucos, uma divindade clandestina. E a divindade se apaixonou por ela. Nada do que aconteceria depois - nem toda a calhordice humana ou maldade da História - apagaria a marca daquele fato: o rei a escolhera, como parceira intelectual e amante. Amor que começa como adoração é o que fica. A FLORA Aconteceu coisa parecida com a Flora, mulher do Sidney. A Flora não perdia oportunidade de agradecer ao Sidney por ter salvo a sua vida. - Você me salvou, Sidney. - Eu sei. - Se não fosse você eu ainda estaria com o Valtão e apanhando todos os dias. - Eu sei, Flora. - Todas as noites eu agradeço a Deus por você ter aparecido na minha vida, Sidney. - Certo, certo. - Eu já te contei o que o Valtão me fazia? - Várias vezes, Flora. - Até hoje eu não posso fazer este movimento aqui, ó. - Eu sei, Flora. - Sabe que uma vez o Valtão... - Flora, você já me contou tudo o que o Valtão fazia. Várias vezes. Tente esquecer o Valtão, Flora. Agora você está comigo. Esquece o Valtão. - Já esqueci. É só quando eu faço este movimento aqui, ó... - Não faz o movimento. - Está bem, Sidney. Você é um homem bom, Sidney. - Eu sei, Flora. Agora vá dormir. No meio da noite, Sidney acordou a mulher. - O que foi? O que foi? - disse a Flora. - Você estava agitada. Gritando. - Sonhei com o Valtão. Ele estava me atacando! - Pronto, pronto. Foi só um sonho. - Me abraça, Sidney. - Pronto, pronto. Só não entendi uma coisa, Flora... - O que, bem? - Você estava gritando "Sim! Sim!". ''Heidegger a queria como intelectual e amante. Amor que começa como adoração é o que fica'' ''Pronto, pronto, foi só um sonho. Só não entendi uma coisa, Flora, você estava gritando ?sim, sim?''

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