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Um projeto de utopia no trabalho de Michel Gondry

Delicioso entretenimento, Rebobine, por Favor é também[br]muito inteligente e estimulante nos conceitos que propõe

Por Gostei Luiz Carlos Merten
Atualização:

Quando esteve em São Paulo, para inaugurar a exposição Rebobine, por Favor, o diretor Michel Gondry disse para o repórter do Estado que o filme começou a nascer na sua infância. Quando garoto, em Paris, Gondry não pensava em ser diretor de cinema. Seu sonho era ser criador de traquitanas, que ele desenvolvia com o irmão, seu cúmplice nas brincadeiras infantis. O que Gondry queria era reciclar os filmes famosos na época, concebidos num circuito independente e refeitos pelos próprios moradores do bairro e utilizando recursos primitivos, como mesas e cadeiras para substituir carros e naves espaciais. Gondry não estava lançando apenas os fundamentos de Rebobine, por Favor, que virou filme, livro e exposição. O filme é este que estréia hoje na cidade; o livro fundamenta e teoriza o conceito que presidiu a realização; e a exposição é a soma definitiva dessa estética da reciclagem, quando o próprio visitante, ou espectador, é convidado a fazer o seu filme num cenário preconcebido, contando a ?sua? história. Talvez a melhor definição para o projeto de Gondry - e para esse filme maravilhoso - esteja contida numa palavra hoje fora de uso, utopia. Rebobine, por Favor é um sonho de cinema. Criador de traquitanas, o diretor e roteirista de Rebobine descobriu que seu interesse, na realidade, não está nas engenhocas, propriamente ditas, mas nas histórias - de pessoas, em especial - que elas permitem contar. Foi assim que surgiu a história dos amigos que ficam responsáveis por essa pequena locadora, um deles é atingido por um raio e desmagnetiza as fitas de VHS disponíveis para locação. A solução é refazer, com os recursos à mão, como quando Gondry era menino, os blockbuster de Hollywood que o público quer ver. O sucesso é espetacular, o público faz fila na porta e a indústria do cinema reage enviando uma executiva durona - tão durona que é interpretada por Sigourney Weaver - para negociar a questão dos direitos. Como ele próprio explicou, Gondry não precisou pensar muito para estabelecer uma lista de filmes para serem refeitos por Jack Black, Mos Def e sua turma. Os filmes basicamente tinham de ser aqueles lançados em vídeo, portanto os blockbusters dos anos 80, a começar por Os Caça-Fantasmas, de Ivan Reitman, que ainda por cima reúne um trio de amigos num negócio suspeito (como os próprios heróis de Rebobine). Gondry admite que gostaria de ter atualizado sua lista e que teria sido divertido recriar, de forma precária, um novo King Kong, mas a versão de Peter Jackson, lançada em DVD, é posterior à tecnologia colocada em xeque por seu filme. Uma das regras ou ?a? regra que Gondry impôs a seus atores foi a de que não revissem os filmes dentro do filme de Rebobine, por Favor. Ele queria que, no limite, o que restasse das obras fosse a sua memória afetiva no imaginário do público. Como nas velhas chanchadas da Atlântida, o que se cria é uma estética da paródia, intencional ou involuntária. Aliás, Gondry chegou a comentar que um filme como Rebobine poderia ser feito no Brasil, mas a seleção de títulos talvez não fosse muito diferente, já que os blockbusters de Hollywood são os mesmos que dominam o mercado de todo o mundo. A pergunta que fica no ar é - Gondry é tão acessível, tão simpático. Alguém lembrou-se de mostrar para ele o filme de Jorge Furtado, Saneamento Básico? Tem tudo a ver com Rebobine, por Favor e até assessoria que fez o filme de Furtado, a Cinnamonn, foi quem trouxe Gondry a Brasil. Por seu recorte amoroso, delicado - Mia Farrow está maravilhosa e tem seu melhor papel desde o rompimento com Woody Allen -, Rebobine, por Favor não incita à unanimidade (que, aliás, como dizia Nelson Rodrigues, é burra). Aqui mesmo, ao lado, temos outro depoimento de quem não gostou (mesmo) do filme de Michel Gondry. Rebobine, o filme, nasceu das reminiscências juvenis do autor. A exposição nasceu do filme, do prazer que ele percebeu no público da comunidade de Nova Jersey em que filmou. Já que Mia Farrow e Woody Allen foram citados, Rebobine, por Favor tem algo da magia, do encanto e da criatividade de Zelig e, principalmente, A Rosa Púrpura do Cairo, do tempo em que Woody era grande, imenso (hoje está um tanto diluído, veja-se Vicky Cristina Barcelona). Rebobine nasceu com a vocação de ser uma comédia popular, puro entretenimento. Poucos filmes recentes são, de qualquer maneira, tão inteligentemente conceituais. Foi preciso esperar quase até o finalzinho do ano para ver esse que já é um dos grandes filmes de 2008, com o Batman de Christopher Nolan. O cinemão não apenas emitiu sinais poderosos de vida inteligente com a nova aventura do Homem-Morcego. Com Gondry, revelou-se uma fonte e tanto de referências e outro forte estímulo à nossa inteligência. Aos nossos corações e mentes de cinéfilos empedernidos.

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