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Um personagem do seu tempo

Joaquim Nabuco e Os Abolicionistas Britânicos reúne correspondência entre diplomata e membros de sociedade antiescravista

Por Lilia Moritz Schwarcz
Atualização:

"Não está muito longe o dia em que, no mapa geográfico da escravidão, o Brasil e Cuba, duas das regiões mais belas e férteis do globo, já não serão manchas escuras na terra americana." Era dessa maneira que, em 8 de abril de 1880, Joaquim Nabuco se dirigia a Charles H. Allen, secretário da Foreign Anti-Slavery Society; uma organização inglesa que lutava pela abolição da escravidão. Na década de 1880, essas eram as duas únicas nações ocidentais a admitir a escravidão em seus territórios, e não sem um pingo de ambivalência o parlamentar brasileiro contrasta a beleza física do local com a "mancha" que representava a escravidão. A carta revela, igualmente, o caráter moderado de seu autor, que estabelece a data de 1º de janeiro de 1890 para a abolição total da escravidão - a despeito de desculpar-se pelo prazo por demais "conciliatório". O fato é que o clima político andava esquentado, e Nabuco, considerado a essas alturas um paladino da luta pela abolição, ao mesmo tempo em que conciliava, procurava avançar. Por um lado, o Império andava com sua imagem externa chamuscada, desde que a Junta Francesa pela Abolição pedira, em 1866, pelo fim da escravidão. Por outro, vivíamos em meio à desastrada Guerra do Paraguai, e o imperador Pedro II, que até então se vangloriava de seus atos "civilizados", não tinha mais como elidir a verdade de que o Estado contornava, mas a escravidão mantinha-se firme. A abolição entraria, então, na agenda do Segundo Reinado, para não sair mais. E é uma foto, em bom ângulo, que o leitor tem agora em mãos, com a publicação de Joaquim Nabuco e Os Abolicionistas Britânicos: Correspondência 1880-1905; livro organizado por Leslie Bethell e José Murilo de Carvalho. A obra apresenta as cartas trocadas entre Nabuco e membros da Anti-Slavery Society, assim como outras recebidas e enviadas a cidadãos britânicos envolvidos na causa. São no total 110 missivas; um conjunto documental que ilumina esse momento ambivalente, em que no Brasil se procurava, de todas as maneiras, apagar tal questão. A tática de delação praticada por Nabuco a partir dos anos 1880 surge, assim, de maneira clara. Era necessário expor abertamente a situação dos escravos no Brasil, e assim constranger as elites políticas nacionais. Por isso mesmo, a conexão britânica para a luta abolicionista é da maior importância para Nabuco, que andava convencido de que a saída era internacionalizar a polêmica e mobilizar a opinião pública. E para tanto, não havia lugar melhor do que a Inglaterra; centro econômico e político à época. Não por acaso, o contato de Nabuco com os britânicos estreitou-se a partir de 1880, logo depois que o político decidiu adotar o abolicionismo. Por outro lado, ele nunca escondera a predileção por Londres: a sua cidade universal. Isso sem esquecer o contato estreito com a aristocracia londrina, promovido pelo barão de Penedo, que sempre amparou Nabuco, sem convencer-se da missão do jovem colega e hóspede frequente. Mas a causa abolicionista era, sobretudo, uma herança do pai, o senador Nabuco de Araújo, que também lhe preparara a candidatura e pavimentara seu futuro político. Nabuco ganharia notoriedade a partir de seus pronunciamentos na Câmara contra a importação dos coolies - os trabalhadores chineses que substituiriam a mão de obra escrava -, e de sua denúncia à companhia inglesa St. John Del Rey Mining Company, que mantinha o regime de cativeiro em seus domínios. A partir de então, o político alcançaria proeminência internacional, e se aproximaria da Anti-Slavery Society. E dessa maneira começa essa história, tão bem narrada pelas cartas de Nabuco e acompanhada pelos organizadores deste livro, que não só incluem uma expressiva introdução, como apresentam notas explicativas que ajudam a reconhecer personagens hoje pouco conhecidos, e a elucidar episódios mencionados na correspondência. Por meio das missivas pode-se dimensionar o novo impulso que o movimento ganhava; a importância da abolição da escravidão no Ceará, em 1884; o descrédito diante da lei dos sexagenários de 1885; a aproximação com Isabel - "que demonstrava grande interesse pelo assunto"; e por fim a promulgação da Lei Áurea, que enche Nabuco de orgulho. Vemos também o esforço do político em ganhar a opinião pública internacional, sua visita ao papa - bem como o pedido para que ele intercedesse -; o apreço de Nabuco pelo The Times, "a voz da civilização"; ou o lado legalista do abolicionismo advogado pelo político: "A emancipação (escreve ele em 1881) não pode ser feita por meio de uma revolução. Ela só pode ser realizada por maioria parlamentar." Após o ato, tudo estaria "definitivamente reabilitado", a não ser a sorte da Regente e do Império; por quem o parlamentar tanto temia. Vemos também, e mais de perto, as veleidades do estadista, que parece chamar por comprimentos quando menciona "seu fraco inglês escrito"; ou mesmo quando defende a igualdade entre as raças. Explicava Nabuco que no Brasil "não existiam maneiras de traçar a linha de cor como fronteira política tão claramente como nos Estados Unidos" e que por aqui "não havia preconceito". Aí aparece Nabuco, filho e neto de donos de escravos, que a exemplo de seu famoso ensaio, Massangana, condena a escravidão mais por fatores pessoais e morais, do que como sistema. Mas se esse traço mais intimista surge de forma localizada, o que o conjunto denuncia é a visão do político que, atuando na esfera pública, condena a escravidão em nome dos valores universais. Não por coincidência, a correspondência após a abolição perde vigor. Voltamos a encontrar Nabuco já acomodado na sua fama, confraternizando pelo fim da abolição. Nas cartas, reproduzidas fielmente em inglês e português, o público reconhecerá o estilo particular de Nabuco, que sempre misturou ativismo político com reflexão pessoal. No entanto, conforme chegamos ao fim do livro, tudo vai ganhando ar de passado. Nabuco, em seus Diários, comparara a passagem dos séculos à confluência de dois rios e admitiu não saber nadar: "Fico imóvel na margem onde nasci." Na década de 1890, o antigo agitador resignara-se a uma espécie de ostracismo, a "viver oculto em si", diante do que considerava ser a censura, a violência e o arbítrio da República. Mas o ativista seria chacoalhado outra vez, com a nomeação diplomática em Washington, e assim se reconciliaria com a República. O fato é que por meio desses documentos se percebe, de maneira definitiva, como o movimento pela Abolição não se confundiu com a luta em prol da República, e como Nabuco era personagem de seu tempo. O contexto era outro e com a surdez que desenvolvera passava a ver "o mundo como uma grande pantomima". Em seus Diários desabafaria: "De que serve fazer a pérola quando não se pode passar de ostra?" Nabuco nunca foi exatamente uma ostra e sempre deixou rastros por onde passou. Talvez por isso tenha enviado um papagaio como presente a Allen: aí estava um símbolo do exótico Brasil, uma lembrança para não deixar esquecer. Na verdade, foram dois os papagaios, mas ambos, apesar de suportarem bem o inverno londrino, jamais falaram. Diferente de seu antigo dono, que se pronunciava muito, e em qualquer ocasião, o bichinho de estimação abriu mão de sua faculdade única de falar. A ave andava "até sem vergonha", mas, coitada, morreria muda e, conforme escreveria o secretário da Anti-Slavery Society, sem jamais ter tido a oportunidade de contar seus segredos ou os de Nabuco! Lilia Moritz Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia da USP e autora, entre outros, de O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e As Desventuras dos Artistas Franceses na Corte de D. João (Companhia das Letras, 2008)

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