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Um pensador traduzido em verbetes

Vocabulário Foucault, de Edgardo Castro, sintetiza, para um público pluralista, os conceitos do teórico, que morreu há 25 anos

Por Rafael Haddock-Lobo
Atualização:

O pensador francês Michel Foucault (1926-1984) é certamente um desses grandes filósofos que necessitam sempre ser lidos e relidos. Sua obra, que se estende do início da década de 60 a meados dos anos 80, foi de grande impacto no panorama filosófico mundial, inclusive no Brasil, onde se tornou um dos grandes pensamentos de resistência à ditadura militar a partir da década de 70. Para muitos, que não eram efetivamente simpatizantes ou adeptos de carteirinha do marxismo, Foucault propiciava um novo e inventivo pensamento de esquerda. Mas não se pode de modo algum tentar classificar seu pensamento sob este ou aquele rótulo, pois, como uma filosofia eminentemente plural, é preciso certo cuidado e dedicação para enfrentar a diversidade de temas que percorrem toda a obra, bem como sua densidade. Este é sem dúvida o grande desafio que um autor como o argentino Edgardo Castro enfrenta ao se propor a realizar um vocabulário filosófico sobre Foucault. Não há como não se elogiar o fôlego com o qual ele se debruçou para realizar este estudo tão rigoroso e atento não só aos termos cunhados pelo próprio filósofo como também aos autores lidos e citados por Foucault e a temas perpendiculares à sua obra. Por essa razão, a chegada de Vocabulário de Foucault em língua portuguesa deve ser celebrada. Além de se tratar de um daqueles livros que dá gosto ter na estante, pela beleza e bom gosto da edição, o trabalho da tradutora, Ingrid Müller Xavier, é precioso e dedicado, certamente também por contar com a revisão técnica de Walter Kohan e Alfredo Veiga-Neto, dois profundos conhecedores da produção do pensador francês e de sua implicação política, social e educacional. Duplamente bem-sucedido, portanto, é este livro que pode, segundo o prólogo à edição brasileira, merecer o rótulo de "caixa de ferramentas" para se pensar com Foucault e a partir dele. Com esta obra, o leitor tem acesso a "um sofisticado mapa de suas principais temáticas e questões". E, de fato, o Vocabulário pode servir a diferentes interesses - por isso, a distintos leitores também. Ao leigo, pode servir como instrumento de aproximação, por sua didática e pela indicação, em cada verbete, de onde, na produção foucaultiana, se encontram tais noções ou discussões; já ao acadêmico, serve para localizar de modo rápido e preciso as questões de seu interesse. E isso sem falar de sua utilidade como instrumento a ser utilizado em sala de aula e para compor as indicações bibliográficas de disciplinas sobre Foucault. Objeções, no entanto, certamente serão feitas à obra - e o autor já se antecipa à mais provável dentre elas. Se o próprio Foucault, no prefácio de um de seus grandes livros, As Palavras e as Coisas, citando a ficcional enciclopédia chinesa de Borges, critica o modus operandi da filosofia ocidental como taxonomia, denunciando a pulsão de classificação do Ocidente e a incapacidade de apreensão de outras formas de pensar, como então tentar criar um saber enciclopédico sobre Foucault? Essa questão pode parecer um profundo equívoco para muitos especialistas em Michel Foucault, sobretudo os que tiveram o mérito de trazer a novidade do filósofo como um pensamento assistemático na década de 70. Mas o livro de Castro, de 2004, reflete uma espécie de "nova tendência" dos estudos foucaultianos, que tem como expoentes Fréderic Gros (grande especialista e organizador da edição dos cursos de Foucault) e Judith Revel, que, inclusive, tem também editado no Brasil o seu vocabulário sobre o pensador, não tão completo como este: Foucault - Conceitos Essenciais (Editora Claraluz). Um exemplo recente em nosso território sobre a atual tendência de se ler o pensador de modo mais sistemático é a tese de doutorado defendida na PUC-Rio por Fabiane Marques de Carvalho Souza, Da Arqueologia à Genealogia: A Questão do Sujeito no Percurso Filosófico de Michel Foucault (disponível no site da universidade), na qual, a partir da referida questão do sujeito, a autora trata da obra do francês. Pode ser verdade que essa tendência reflita um tempo em que o filósofo esteja cada vez mais assumindo a figura do especialista, contudo se há algo que o Focault nos ensina, como acadêmico de excelência que era, é que, mesmo dentro da academia, há ainda muito a se fazer. E, de modo algum, um pensamento que se apresenta de modo mais sistemático seja necessariamente conservador. Aliás, conservador hoje talvez seja (como todo conservadorismo) não aceitar o novo e ter o não-sistemático como verdade última. Nesse sentido, então, o livro de Edgardo Castro é bem-vindo, para se ter nas bibliotecas ao lado das eternas obras de Roberto Machado, Salma Muchail, Guilherme Castelo Branco e Vera Portocarrero, que não podem nunca sair de nossas estantes. Rafael Haddock-Lobo, pesquisador de pós-doutorado na USP/Fapesp, é autor de Derrida e o Labirinto de Inscrições (Zouk)

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