Um pai

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Por Adriana Falcão
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Ela vai chegar agora. Quer ver? Um, dois, três e... Nada. Devia ser proibido filho crescer. Filha, então, devia ser o bebê do papai pelo resto da vida. Maldita hora que eu deixei ela sair. Malditas amigas que convidaram ela pra essa festa. Maldita hora que eu deixei ela voltar com as malditas amigas. Maldita hora que eu deixei ela voltar com as malditas amigas às 3 da manhã. Maldito celular fora de área. Maldita violência urbana. Malditos carros, malditos postes, malditos freios que falham. Malditos homens que adoram seduzir uma pobre menininha indefesa. Maldita mania de ficar aqui pensando em desgraça. Chega. Vou pensar numa coisa bem boa. Um mundo sem violência. Sem acidentes. Um mundo sem homens. Tirando eu, é claro. Aliás, botando eu, uma vez que eu tinha tirado todos. O mundo ideal. Só eu e um monte de mulher. Sem malucos dirigindo em alta velocidade pelas ruas. Sem bandidos assaltando mulheres desprevenidas nos sinais. Sem canalhas agarrando as filhas dos outros nas festas. Sem festas. Apenas simpósios femininos. Simpósio feminino sobre cabelos rebeldes. Simpósio feminino sobre depilação com cera quente. Simpósio feminino sobre os benefícios das loções de limpeza contra acne. Assim eu estou sendo meio machista. Preciso arranjar um simpósio inteligente. Simpósio feminino sobre a questão das células-tronco em embriões... Mas se não existissem homens no mundo, também não existiriam embriões. O mundo ia acabar. Porque eu não ia dar conta, sozinho, de fertilizar todas as mulheres dos cinco continentes. E nem queria mais um bocado de filho, e muito menos filha, pra depois crescer e se achar no direito de viver sua própria vida como se a vida fosse dela própria. Nessa besteirada de mundo ideal já são 3 e 20 e nada dela chegar. E se eu continuar pensando na minha menininha solta por aí num mundo com violência, acidentes e homens, muitos homens, homens por toda parte, todos uns cafajestes, eu enlouqueço. Ligo pro meu psiquiatra? Melhor não. Vai que o coitado está lá, maluco, na mesma situação que eu, esperando a filha chegar de uma festa, e fica mais maluco ainda? Aí ele perde os clientes dele, eu perco o meu psiquiatra, e olha a tragédia. Chega de imaginar tragédia. O mundo já está trágico demais pra gente ainda ficar pensando nisso. Mais de 1 bilhão de pessoas são assaltadas por dia em cada esquina. Até os assaltantes estão sendo assaltados. Nem os assaltantes saem mais de casa. As ruas estão desertas. E rua deserta é um perigo. Principalmente para um bebê de 17 anos. Eu devia ter ido com ela. Escondido, obviamente. Porque ela jamais ia aceitar a minha companhia. Mas se eu tivesse ido, ia presenciar tudo, o que seria ainda pior. Como presenciei aquela hedionda cena: ela dançando com um cafajestinho de boné, nos 15 anos da filha do Geraldo. Tão agarrados que mal saíam do lugar. Parecia que tinham alugado um tijolo. Não. O que o coração não vê os olhos não sentem. Não é isso. É o contrário. Mas também quem pode raciocinar direito pensando na própria filha nos braços de um qualquer? Calma. Ela não está nos braços de um qualquer. E nem aconteceu nenhuma outra desgraça. Ela só se atrasou 22 minutos. E oito segundos. Nove. Dez. Onze. Doze. Vou na janela de novo? Melhor esperar aqui mesmo. Nunca vi alguém chegar exatamente na hora que a gente está esperando na janela. Aliás, nunca vi alguém chegar quando a gente está esperando em qualquer lugar que seja. Eu tenho de esquecer que estou esperando. Aí, sim, quando eu menos esperar, ela chega. E o que é que eu faço enquanto esqueço que estou esperando? Finjo que não estou fingindo que estou tentando esquecer que estou esperando e aproveito pra me preparar pra hora que ela chegar. Ela vai ouvir poucas e boas. Ah, se vai. Está me fazendo esperar? Pois vai ver só o que a espera. Ela finalmente vai conhecer o pai que tem. Vai levar a maior descompostura que alguém já levou na vida. "Olha aqui, sua devassazinha pervertida, está pensando que eu sou idiota? Pois desta vez a senhora passou dos limites e, portanto, está terminantemente proibida de..." Din-don. - Oi, pai. - Amorzinho do meu coração! Se divertiu muito na festinha?

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