Um novo sentimento do tempo

Para Mia Couto, o melhor caminho para desvalorizar o passar dos dias é transformá-lo em histórias

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Por Ubiratan Brasil
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Em Moçambique, um ditado diz que cada velho que morre é uma biblioteca que arde. Assim, em um país carente de recursos, a tradição oral é um tesouro, pois carrega a trajetória de todo um povo. Em meio a crises e guerras intermitentes, a África é um continente que resiste. É o que defende o escritor moçambicano Mia Couto, cuja mais recente obra, Venenos de Deus, Remédios do Diabo (Companhia das Letras, 192 páginas, R$ 38), une tanto as tradições de seu país como a vida cotidiana do Moçambique contemporâneo. Trata-se da história de Bartolomeu Sozinho, um velho mecânico naval da era colonial, que vive um momento singular - aposentado e já tendo vivido em uma nação que se tornou independente de Portugal e ainda enfrentado os 30 anos de uma devastadora guerra civil, ele está doente e convicto de que vai morrer. Uma certeza que atrapalha a ação de Sidónio Rosa, médico português enviado para aquele lugar, Vila Caçimba, encarregado de tratar de uma terrível epidemia e que o atende em sua casa, buscando, em vão, injetar-lhe esperança. Fraco, Sozinho é tomado por lembranças e desejos, que tomam forma em palavras desencontradas, mas que se traduzem em histórias emblemáticas de seu povo. Verdadeiras ou não, elas carregam, na verdade, a sabedoria da tradicional cultura oral africana. Desconfiado da veracidade do que ouve, o médico tem, no entanto, outro desejo que não apenas o de curar o velho: reencontrar Deolinda, antiga paixão, filha declarada de Sozinho e pivô de uma espetacular história de amores e falsidades. Ao se debruçar sobre a mentira e sobre a solidão, Mia Couto trata de temas que lhe são caros. ''Aos completar 50 anos, ganhei o sentimento do tempo e isso foi algo novo na minha vida'', comenta o escritor que, nascido em 1955, também é biólogo e cujo trabalho, traduzido para diversas línguas, tem a questão da identidade como essência. Dono de uma especial prosa poética e ainda firme na ambição de escrever um livro que fluísse como a oralidade, Mia Couto respondeu, por e-mail, às seguintes perguntas. O passar do tempo é um elemento importante em sua obra, especialmente nesse livro. Por quê? Acontece-nos, por vezes, haver tempo; acontece-nos, outras vezes, tropeçar na idade. A mim aconteceu-me aos 50 anos ganhar o sentimento do tempo e isso foi algo novo na minha vida. O tempo é - como diz o provérbio da minha terra - um ovo: se não se segura bem, cai; se se aperta com força, quebra. A única forma de lidar com ele é desvalorizar. E o modo mais leve de desvalorizar o tempo é convertê-lo em história. Foi o que fiz. Também a mentira , parece, é uma condição essencial para o existir. É correto isso? Toda a literatura é uma mentira que não mente. Neste caso, a narrativa desse romance se constrói como uma caixa de ilusões e fala de lugares e pessoas que sabem que, para se sentirem existentes, devem recorrer à mentira. Nessa construção pecaminosa, Deus e Diabo, por vezes, trocam de função. Esperar pela pessoa amada é um ato que exige paciência. Até que ponto tal persistência ainda é comum na sociedade moderna? A pessoa amada nunca se encontrou. Ela se construiu, numa paciente obra a dois. No caso deste romance, essa procura exige que as pessoas mudem de continente, mudem de nome e mudem para outra vidas. Os segredos familiares são fonte benéfica de inspiração, tanto para a literatura como para o cinema e o teatro - Nelson Rodrigues, por exemplo, é um dos mestres em apresentar o apodrecimento familiar. O que mais te atrai nesse assunto? Escutei o escritor Amos Oz, em Paraty, no ano passado, durante a Flip, dizendo que há mais mistério oculto numa família que numa viagem a Marte. A família não é apenas uma constelação de pessoas, é a nossa primeira narrativa, uma teia em que nos construímos como personagens. Essa revelação de ocultas mentiras sobre a nossa própria identidade é, por exemplo, um tema constante nas novelas. Mais que um velho arquétipo literário é um receio nosso, profundo, de sermos estranhos e intrusos numa família que nos acolhe e que inventa o nosso pertenceralgo pessoal por via deferida, nós nos reinventamos nos personagens que nascem dos nossos fantasmas. A angústia de Bartolomeu Sozinho diante do passar do tempo e da proximidade da morte também é sua? Sim. Não chamaria, no meu caso, de angústia. Mas existe a sensação que estamos no limiar de um abismo e, nesse abismo, vão desabando e se extinguindo os nossos pais e os da geração deles. A consciência da finitude é uma aprendizagem impossível. Talvez essa impossibilidade resulte de que não existe fim. Carecemos, sim, aprender a recomeçar em outras vidas, outros seres. As palavras fazem mover as coisas? São perigosas as palavras? Os pensamentos e as sensibilidades fazem mover as coisas. As palavras que movem e que constituem perigo são as palavras que não podem ser ditas em nenhuma língua: as palavras do sonho. O mal é um aliado da literatura? Sim. Mas não sei o que é o mal. E, assim posta a questão, a literatura pode ser uma poderosa construtora do Bem. Trecho Sidónio alisa a areia com os pés. É como se as palavras da mulher tivessem tombado no chão, escavando, sob os seus pés, fundos precipícios. Munda encosta-se no corpo do português e assenta um dedo sobre os lábios dele. "Não tem que falar nada, Doutor. Apenas me prometa uma coisa." Ele ergue o rosto e, de repente, não sabe que mulher lhe surge por detrás dessa voz que lhe pergunta: "Se o meu marido não despertar, amanhã, se ele adormecer de vez, promete que espera por mim?" Pareceu-lhe que ela tinha acrescentado: "Você espera, meu anjo-da-guarda?" Pareceu-lhe. Quem pode saber? Afinal, tudo começa num erro. E tudo termina de mentira. "Suacelência me contou muita coisa." "Imagino."

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