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Um mundo sem cinzas

Por Roberto da Matta
Atualização:

A verdadeira perfeição não é a ausência do mal, mas a sua mais perfeita subordinação. Louis Dumont Venho do tempo que a Quarta-Feira de Cinzas era o contrário do carnaval. O carnaval nos dava licença para romper com as regras que governavam elos entre homem e mulher, adultos e crianças, pobres e ricos, trabalho e lazer, casa e rua, dia e noite, brincadeira e gravidade; cuja moldura estava densamente ligada ao mundo religioso e cuja maior e mais legítima expressão era o catolicismo romano. No carnaval, "tudo era possível", e esse "tudo" tinha como eixo os elos entre os sexos (as mulheres subordinavam os homens, o feminino ficava maior e mais importante que o masculino) e o corpo era visto como fonte de prazer e não de pecado. Quando a festa terminava, com a gente cantando em desespero "é hoje só/ amanhã não tem mais!", vinha essa tal Quarta-Feira de Cinzas e o salão festivo virava o espaço sombrio da igreja onde éramos obrigados a receber cinzas. Essas cinzas que, postas em cruz nas nossas testas, abruptamente nos remetiam ao limite, à morte ou, pior que isso, a uma eterna condenação. Era a uma covardia. "Robertinho é canhoto!" A frase - mistura de surpresa, admoestação e denúncia de anomalia - foi das primeiras que gravei quando criança. Todo mundo usava a mão direita, mas eis que eu - descobriram - era um canhoto nato, um errado que "fazia tudo com a mão esquerda". Confesso que grudei a frase na minha memória como um traço de anormalidade. Tinha o defeito de ser canhoto. Sinistro, aprendi depois. Anômalo, descobri nas aulas e livros quando me esforcei para ser um estudante dos costumes humanos. Então, com a tranquilidade do intelecto, fiquei sabendo como muitas sociedades condenam a mão esquerda às tarefas mais simples e impuras quando simplesmente não a deformam. Havia, como li num ensaio célebre, uma proeminência universal da mão direita. Mas a velha observação ficou como a primeira e talvez a mais importante lição de relatividade que jamais recebi. Era canhoto e diferente. Como, eis a questão, não tomar a diferença como inferioridade ou anomalia? Foi (e não foi) muito complicado. Os livros do Tesouro da Juventude revelaram que alguns gênios eram igualmente canhotos. A canhotice formava um vasto clube. Leonardo da Vinci, um gênio insuspeito, era canhoto. Liguei-me a ele pelo gosto do desenho e porque eu também era capaz de escrever da esquerda para a direita, produzindo um texto apenas legível quando colocado na frente de um espelho. Em seguida, fui fã da legião de jogadores de futebol canhotos como eu. "Por que, um dia questionei, havia canhotos?" Um tio Silvio, repleto de bom senso, encerrou o assunto, plantando o relativo e o alternativo que até hoje carrego comigo, quando respondeu num abençoado sorriso: "Porque existe a mão direita!" "Papai, por que existe segunda-feira?", perguntou-me minha filhinha Maria Celeste, cujo sono pesado tornava o acordar cedo para ir a escola, um pesadelo. "Porque existe domingo!", respondi no ato, repetindo uma lição de sabedoria que estava dentro de mim. Sem as polaridades não haveria condição humana. Todas as grandes cosmologias foram permeadas por dualismos e as sociedades que os antropólogos descobriram nos seus estudos as usam para inventar e compreender o mundo. Dia e noite, inverno e verão, paraíso e inferno, mortos e vivos, Deus e Satanás, natureza e cultura, homem e mulher, sagrado e profano, esquerda e direita, alto e baixo, dentro e fora, preto e branco, pureza e impureza, velho e novo, feio e bonito, carnaval e cinzas... A lista de alternâncias, cuja característica principal é a complementaridade e a interdependência, não tem fim. A polaridade indica que um termo não existe sem o outro que é o seu exato oposto, não o seu sinônimo ou paralelo. Ao passo que a complementaridade revela algo que nós, modernos, estamos tentando acabar faz algum tempo: a interdependência. O fato de que essas oposições se manifestam por meio de suas relações. Só entendemos a vida quando estamos diante da morte. É a experiência com o feminino que nos dá a plena sensação de masculinidade (e vice-versa!). Seria o mal uma ausência do bem? Ou eles existem como princípios independentes, a questão sendo - como diz Louis Dumont - que o bem contenha (e canibalize) o mal, mesmo quando ele é o seu contrário? Antigamente, a qualidade do carnaval era medida pela intensidade da Quaresma, pois num dado momento, o brincar, o pular, o esbaldar-se usando o corpo que nesta festa subjuga a alma termina cedendo lugar às cinzas que representam a morte. O fim do excesso é sinalizado pela contenção. Assim, se o Diabo com sua sexualidade desabrida reinava no carnaval, ele voltava ao seu devido lugar na Quaresma. O problema é que o carnaval deixou de ser uma festa obrigatória e virou feriado. Podemos optar por ele ou tê-lo todos os dias, de modo que o espaço entre excesso e restrição se confundiu e talvez tenha terminado. As cinzas não simbolizam mais o pecado e a morte no plano do religioso que ligava tudo com tudo. Neste nosso mundo tocado a progresso e liberação, entretanto, as cinzas são apenas os sinais da poluição com a qual vamos destruindo o planeta. Que desastre!

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