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Um Melville pequeno, só no tamanho

A investigação psicológica de Bartleby, o Escrivão antecipa Freud em 50 anos

Por Wilson Bueno
Atualização:

O mais recente título lançado pela inventiva coleção Sabor Literário (que tem a cerejinha como selo), da José Olympio, já está nas livrarias: nada menos do que o impagável Bartleby, o Escrivão, do não menos impagável Herman Melville (1819-1891). Com tradução de Pinheiro de Lemos e, para variar, com requintada, senão antológica, apresentação do sempre imprevisível Jorge Luis Borges. Embora descoberto tardiamente, sobretudo pela buliçosa geração dos anos 20, o escritor americano tornou-se, ainda assim, capaz de projetar clarões e fulgores sobre a "cruel oficina" que foi, sem erro, a grande arte do século passado. De Ernest Hemingway a José Saramago, com passagem obrigatória até mesmo por Gabriel García Márquez, em todos incidiu a luz, a um tempo sombria e generosa do extraordinário autor, popularizado, sabemos, pelo mais que célebre Moby Dick (1851). Mas não se enganem - Melville foi muito além de suas próprias intenções. Buscador obsessivo, dono de uma prosa radicalizada e alguma vez patética, é espantoso que, notadamente este Bartleby, uma de suas obras-primas, tenha sido publicado em 1856. Meio século antes de Freud, numa noveleta aparentemente destituída de importância, que não vai além de 80 páginas, Herman Melville desvenda as manhas e artimanhas de que se vale a "consciência culposa" de um homem, e a sua melancolia. Investigação "psicológica" incomum para seu tempo, Bartleby, o Escrivão antecipa, de modo vertical e quase acachapante, não só Kafka, como todos os demais cultores de "disparates" e "absurdos" que ao gênio de Praga se seguiram. Não é pouca coisa, senhores, principalmente para um escritor que passou mais de 40 anos afundado até o pescoço no limbo literário ao qual, vez por outra, certo ensaísmo de algibeira se mostra pródigo em condenar. Felizmente nunca de modo conclusivo. Toda obra de arte, quando animada por talento e engenho, parece garantir a própria sobrevivência, por mais que se esforcem os desavisados em varrê-la para debaixo do tapete do olvido e da indiferença. Não seria com o admirável autor deste Bartleby, o Escrivão, além de outros títulos, a exemplo das mais de 600 páginas de Mardi, que detratores, invariavelmente superficiais, haveriam de ter êxito. Aliás, segundo Borges, Mardi vaticina as obsessões e essências kafkianas de O Castelo, O Processo e América. E quanto aos detratores, não deu outra: a História os soterrou, como não poderia deixar de ser, sob o pó dos tempos, enquanto Melville só cresceu junto a inúmeros leitores, em sucessivas gerações. Não se trata, evidente, da primeira tradução ao português do clássico melvilliano. Esta que a coleção Sabor Literário apresenta, não desmerece o original. Afinal de contas, o que se tem em mãos não é um texto qualquer, mas ouro literário de raríssima extração. A novela é deliciosamente narrada por um velho advogado que vê o cotidiano de seu escritório repentinamente invadido por uma figura, a princípio excêntrica, que vai aos poucos dominando a "cena", e contaminando a atmosfera até então funcionária e rotineira de duas salas apertadas de Wall Street, na Nova York do século 19. Quando instado a realizar qualquer tarefa, Bartleby (é ele a "figura" e a "persona") se safa de todas, mediante bordão insólito e marcado por ainda mais insólita determinação: "Eu preferia não fazê-lo." Não, leitor, nenhuma impertinência aí, nenhuma arrogância; nem a sombra, digamos, de uma desobediência insolente... Polida, firme e acima de tudo inabalável, a um passo de convencer a todos e a todo mundo, a voz ao longo da novela há de continuar recusando não só ordens peremptórias, mas até mesmo a mais cândida das sugestões. Sempre de um jeito curto, incisivo, mas supremamente delicado: "Eu preferia não fazê-lo." Seja a conferência de um pequeno documento que chefe e escritório têm urgência em ultimar; seja o trabalho coletivo que o escritório inteiro, de repente, se vê obrigado a concluir, com não menor rapidez. O que assombra é a radicalização, literalmente até a morte, da decisão excludente: "I would prefer not to." Expressão, aliás, que jamais será suficientemente traduzida ao português ou a qualquer outra língua. Indispensável esclarecer que "I would prefer not to", na explícita intencionalidade do inglês de Melville, não é bem uma negativa "condicional", tal como a conhecemos os lusófonos, por exemplo. É mais, bem mais que isso. Há um quê de intraduzível arcaísmo filtrado por severa elegância em "I would prefer not to". Bartleby, convém adicionar, é um ser humano cortês, gentil e até prestativo, desde que não tenha de se submeter a nenhuma ordem ou sugestão de segundos ou terceiros... E, assim, entre sustos, arremedos, imprecações e estranhamentos, em passagens muitas vezes de um patético cômico e irrefreável, segue Bartleby e a sua inalienável decisão de gozar do sagrado direito à opção de preferir não fazer quando convocado a fazer qualquer coisa. Até a "coerente'''' decisão terminal de preferir, por vias transversas, não viver mais. "I would prefer not to"... Bartleby, não nos esqueçamos de anotar, desvela, ou escancara, mais que tudo, a meu ver - sob nuanças psicológicas absolutamente inusuais para a época em que foi escrito -, as sutis armadilhas com que várias instâncias de "domínio" se colocam nas relações interpessoais de nosso sempre insensato cotidiano. Melville, portanto, revela o dom de instituir, a seu tempo, e a seu modo, um novo leitor: aquele que aprende a "desconfiar" das intenções primeiras de um criador literário e passa a entrever, por detrás da escrita, silhuetas e sombras, queixas e pesadumes - à primeira vista escassamente perceptíveis. Mais ainda face às limitações "técnicas" do constructo literário de então. Assim, Herman Melville, neste curto e decisivo texto, que sem exagero poderia ser "tombado" como patrimônio da humanidade, talvez seja o escritor que melhor se deixou contaminar pela disturbadora ficção de Franz Kafka (1883-1924). O que reafirma a tão lúcida quanto extravagante argumentação de Harold Bloom em seu A Angústia da Influência, pelo qual - em rápidas tintas -, um escritor do presente "influencia" um escritor do passado. E, desse modo, temos que o Gregor Samsa kafkiano é, com clareza, o pai de Bartleby, este também pobre-diabo para sempre inscrito na literatura, refém da preferência "congelada" de não fazer o que prefere não fazer: "I would prefer not to." Livro único, gentil leitor, que de pequeno só tem o tamanho e o número de páginas.

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