Um Matraga muito além do bem e do mal

Nova encenação do conto de Guimarães Rosa sobre o valentão que virou penitente ganha força com o ator Jackyson Costa

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Uma adaptação de Guimarães Rosa sempre será uma adaptação, em que pesem as intenções de seus realizadores. Foi assim com o filme, hoje clássico, de Roberto Santos (de 1965)e a montagem teatral de Antunes Filho (de 1986). É assim também com a adaptação dirigida por André Paes Leme para o conto A Hora e a Vez de Augusto Matraga, em cartaz no Teatro Sesc Anchieta até dia 23. O conto, integrante do livro Sagarana, traz uma cilada: seu narrador é onisciente mas incapaz de dar conta das digressões filosóficas dos personagens que gravitam em torno do instável e brigão Matraga, transformado em penitente por um revés do destino. Em tempo: tanto o filme como a montagem teatral atual cumprem mais que a função de traduzir visualmente o universo de Rosa, contando ambos com o talento de atores bem ajustados ao papel (Leonardo Villar no filme e Jackyson Costa no teatro). Tanto em Villar como em Costa há sinais que oscilam entre uma virilidade rústica e uma delicadeza quase feminina, características do próprio Matraga, personagem tão ambíguo como o Riobaldo de Grande Sertão: Veredas, cuja identificação umbilical com Diadorim faz lembrar muito a imediata (e interdita) empatia de Matraga pelo jagunço Joãozinho Bem-Bem. É raro que se registre no teatro um ato tão comovente como a cerimônia do lava-pés oficiada pelo Matraga de Jackyson Costa. Ao escolher aleatoriamente um espectador na platéia, o ator transfere para o eleito o papel messiânico de redentor, contribuindo ainda mais para acentuar a complexidade do ''''inadaptável'''' Rosa. Inadaptável porque sempre se perderá uma ou outra palavra essencial na cosmologia que define o sertão mítico de Matraga: se o adaptador adota o ponto de vista cristão da redenção, perde o conteúdo panteísta. Se opta por um caminho alógico, fica só com a mensagem humanista. E há mais. Muito mais. No percurso de um personagem como Matraga, beberrão criador de casos que perde a mulher e a filha para outro e se arrepende, o desejo de ascese é tão forte como o da individuação. Ser santo é tão desejável como ser um inocente pagão. Ser homem, tão desejável como ser mulher. Mas não se pode ser as duas coisas ao mesmo tempo. Resolver essa equação fica por conta do leitor de Rosa. Daí as dificuldades de se adaptar Matraga, valentão reduzido à humilde condição de penitente e condenado a rezar ao lado de carolas, quando seu desejo é seguir o jagunço Joãozinho Bem-Bem. Mostrar no palco esse conflito entre ética cristã e nostalgia de um mundo pré-moral é o grande desafio que o adaptador e diretor André Paes Leme decidiu enfrentar. Fez isso com muita competência. Procurou ainda a gênese do barroco em Rosa, aliando-se ao compositor e diretor musical do espetáculo Alexandre Elias, que buscou a correspondência musical de sua invenção lingüística, tão extraordinária que o próprio autor desestimulava os tradutores a encontrar palavras equivalentes em seus idiomas. É certo que muitas dessas canções são sugeridas pelo próprio conto. Na pontuação das frases que persegue o ritmo sertanejo e a expressão oral do Norte de Minas o adaptador foi buscar elementos da criativa trilha sonora, que dispensa a parafernália tecnológica para confiar aos atores a tarefa de imitar o tropel dos cascos dos cavalos, a cantoria das maritacas ou a expressão oral do próprio infortúnio. A cenografia de Carlos Alberto Nunes e o projeto de luz de Renato Machado contribuem para definir a paisagem desértica e bíblica do sertão rosiano, que o estado de contrição de Matraga deve fazer novamente florescer com a chegada da estação das águas. Há, no entanto, certos exageros, como na cena em que os capangas do major Consilva espancam Matraga. A transferência dos golpes para a vianda de gado resulta desconfortavelmente paródica quando deveria provocar comoção. O excessivo uso da música em momentos que pedem silêncio prejudica de forma brutal o andamento do drama. A morte épica de Matraga, que clama por justiça quando o amigo João Bem-Bem quer vingar a morte do capanga, é resolvida de forma melhor. Contribui para isso a notável comunhão de Fábio Lago e Jackyson Costa, como nas grandes sagas heróicas. Ao amalgamar penitente e jagunço numa mesma morte e num mesmo corpo, reforça-se a tese de que o último, além de um estado de espírito, adota um modo de ser compatível com a aridez do sertão: avesso à fé, mas ainda assim esperançoso.

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