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Um inventário das misérias humanas

Ricky, de Ozon, e Little Soldier, de Annette Olsen, primeiros filmes em competição, apontam pequenos detalhes da vida

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Diretor artístico do Festival de Berlim, Dieter Kosslick, deu entrevista que está repercutindo bastante. Jornalistas estrangeiros perguntaram-lhe de que filmes havia gostado ultimamente, com exceção dos que compõem a programação da Berlinale? Kosslick disse que achou O Curioso Caso de Benjamin Button maravilhoso, que Frost/Nixon é um filme político diferente (e forte), mas reservou surpreendente elogio para Mamma Mia! - O Filme. Kosslick contou que assistiu ao musical do Abba num domingo à tarde, com sala lotada e plateia de jovens e espectadores mais velhos, e todos experimentavam a magia que só o cinema pode oferecer. Mamma Mia!, segundo ele, reconcilia a massa com o cinema e deixa os espectadores com fome de filmes. Essa mesma euforia está sendo experimentada pelo público que lota as sessões da retrospectiva, que este ano leva o sugestivo título de Bigger Than Life, contemplando o sistema de projeção de 70 mm. Havia gente chorando na abertura de A Noviça Rebelde na quinta, espectadores que nunca haviam visto o musical de Robert Wise com Julie Andrews no cinema, e mesmo ainda numa tela daquele tamanho, e com aquele som estereofônico. Ontem à tarde, a retrospectiva exibiu Ben-Hur, de William Wyler, e à noite Lord Jim, de Richard Brooks, todos com ingressos esgotados bem antes do começo do festival. Grandes filmes que ajudam a reconciliar o público com o cinema. Bigger Than Life, Maior Que a Vida pode ser uma definição polêmica para o cinema, ou para um tipo de cinema. A presidente do júri, atriz Tilda Swinton, disse, por exemplo, que se sente mais atraída por little touches, os pequenos toques (detalhes) que fazem dos filmes experiência íntima que o público pode compartilhar no escurinho das salas. Os primeiros filmes da competição apontam para esses pequenos toques. Um bebê que possui asas e voa em Ricky, de François Ozon; uma mulher que participou da guerra (no Iraque ou no Afeganistão, não fica muito claro onde) e volta para casa, na Dinamarca, para servir de motorista para o pai, que comanda uma rede de prostituição de mulheres africanas, em Little Soldier, de Annette K. Olsen. Isso e mais um filme que estreou ontem no Brasil, O Leitor, de Stephen Daldry, com Ralph Fiennes e Kate Winslet, e que está aqui fora de concurso. A atriz duplamente vencedora do Globo de Ouro (melhor atriz, por Foi Apenas Um Sonho, coadjuvante, por O Leitor) concorre ao Oscar de atriz justamente pelo filme de Daldry, o diretor de Billy Elliott e As Horas. Kate fez uma entrada triunfal no salão do photo call, para as fotos, e depois na sala em que se realizam as coletivas. Sem o menor pudor, fotógrafos e jornalistas deixaram-se levar pela tietagem e lhe pediam que assinasse autógrafos. Kate admitiu que está numa fase muito feliz de sua vida e carreira. O filme busca outro viés para retomar o tema do Holocausto e das responsabilidades do povo alemão pelos crimes do nazismo. Daldry e seu roteirista, o dramaturgo David Hare, confirmam o gosto pelo cinema estruturado de As Horas. Pode não ser para todos os gostos e correria o risco de virar uma narrativa gélida se não fosse a alta qualidade da interpretação. Não apenas Kate e Fiennes estão impecáveis. Lena Olin tem cinco minutos de raro brilho no desfecho, que dá sentido à história do homem que reencontra, 20 anos depois, a mulher que foi sua amante, quando ele era adolescente, e mais tarde é condenada por tribunal que julga nazistas. O fato de ele ser o leitor do título está ligado à facilidade com que ela admite e assume sua culpa, uma vergonha que não a absolve de seus crimes, mas permitirá a ambos uma virada nas respectivas vidas. Berlim deixa para trás as correrias e perseguições de O Internacional, thriller de Tom Tykwer com Clive Owen que abriu a programação, fora de concurso, anteontem. O francês Ozon de alguma forma completa sua trilogia sobre a morte, integrada por Sob a Areia e O Tempo Que Resta. O bebê dotado de asas desaparece no mundo para que uma família disfuncional resolva seus problemas e o autor permaneça fiel ao seu tema, a convicção de que não existe amor feliz. Ricky segue-se a Angel, na carreira do diretor. Marca uma mudança de rumo, e clima. Ozon não deixa de jogar a carta de um realismo fantástico, mas o que lhe interessa são as pequenas coisas da vida. Essas pequenas coisas compõem um bestiário das misérias humanas em Little Soldier. Pai e filha reatam uma relação impossível, mas a Dinamarca que Annete K. Olsen filma não é mais a do Dogma de seu filme anterior, In Your Hands. O filme não só tem música, como possui clichês de filmes de ação, de gângsteres, principalmente. A filha, o pequeno soldado, é o herói; seu pai, o vilão. E a prostituta negra é a vítima que a heroína quer salvar para redimir o mundo. Annette quer discutir o que move pessoas a atitudes salvacionistas. Mais do que a compaixão pelo outro é, muitas vezes, a vontade de auto-redenção que move essas pessoas. O festival começa a levar jeito. No fim de semana, Claude Chabrol mostra seu novo filme, Bellamy, e ganha a Berlinale Kamera, um prêmio de carreira importante, mas não tão importante quanto o Urso especial de carreira, que este ano vai para o compositor Maurice Jarre, admirado, acima de tudo, por sua parceria com o cineasta David Lean. O repórter viajou a convite da organização do festival

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