Um golpe preciso no gelo da alma

Em Lição de Kafka, Modesto Carone analisa como o ficcionista moldou a linguagem para denunciar a experiência da alienação

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Por Francisco Quinteiro Pires
Atualização:

Franz Kafka tentou obsessivamente compreender o que se fazia incompreensível. Mostrou a frustração de indivíduos alienados e desvelou a impossibilidade de o ser humano moldar o próprio destino. "Hoje a coisa piorou", diz Modesto Carone, de 72 anos. Para o tradutor da obra kafkiana, o mundo está cada vez mais regulado por uma história cega; os esforços para a conquista da liberdade redundam em iniciativas inúteis. Kafka ficou atualíssimo - por mais que idealize uma realidade benfazeja, segundo Carone, a humanidade se encaminha por um desvio de rota. "A literatura, para Kafka, é um espelho que adianta como um relógio", diz. A profecia se cumpriu. Por isso é oportuno o lançamento de Lição de Kafka (Companhia das Letras, 144 págs., R$ 29,50), coletânea de 14 ensaios, alguns inéditos. Escritos desde o começo dos anos 1980, quando Carone inicia o projeto ambicioso e bem-sucedido de traduzir a obra kafkiana diretamente do alemão, os artigos são para estudiosos e leigos. No livro, Carone mostra como Kafka pretendeu deixar o leitor "mareado em terra firme". A prosa do autor de O Processo compara-se a um machado que golpeia o mar congelado existente em cada um de nós. "Kafka é um dos últimos escritores que causam no leitor uma angústia concreta", diz o tradutor e ensaísta. "O poeta da alienação" tinha por tarefa principal abalar o que é imutável e rígido no homem. Kafka criou uma literatura que dissolve "a discrepância entre prosa e poesia". Ele é um Dichter, palavra alemã para poeta. Admirador intenso do francês Gustav Flaubert, Kafka era adepto da "palavra justa". Ele defendeu a ideia de que forma e conteúdo devem coincidir de maneira precisa. Dizia que o sentimento realizado no coração podia ser preservado na escritura. "Ele acreditava na arte exigente." A extrema condensação poética da ficção kafkiana pode ser, assim, vista como exemplo de uso responsável e lúcido da linguagem. Para Carone, o segredo de Kafka está na invenção de "uma forma literária que generaliza a experiência individual". Um dos artifícios do escritor checo é o narrador insciente, "que não sabe de tudo, que ficou à altura do ombro do personagem, rebaixando o horizonte da narrativa, tornada obscura". Quando o narrador não sabe, o personagem e o leitor deixam de saber. Outro é a adoção da linguagem burocrática. "Ao contrário dos seus pares, que inventaram uma expressão artificial e barroca, Kafka transforma em matéria literária o alemão burocrático, calcificado e empregado no âmbito institucional." A prosa seca e límpida, de recorte clássico, segundo Carone, promove o choque com o mundo obscuro que ela apresenta. "Kafka não podia ter feito diferente: ele não humanizaria com a linguagem o que é desumano", explica. "Se o fizesse, isso seria uma falsificação, uma ideologia entendida como falsa consciência." Quando se interessou pela obra kafkiana, Carone intuiu que ela era realista. Ele admite a dificuldade de classificar a produção do ficcionista checo na história da literatura. "Sóbrio, ele não se enquadra na explosão do expressionismo", diz. "Pertence à Weltliteratur (literatura mundial), que o homem civilizado deve ler." O realismo de Kafka tem uma sutileza - sua ficção narra as coisas como elas são e as coisas como elas são percebidas pelo olhar alienado. Por isso, Carone propõe que A Metamorfose não seja lido como um romance fantástico, mas como a revelação do horror da vida em família, entendida como um ninho de víboras. "Kafka não mostra as formas, mas as deformidades", diz o tradutor, que vê o escritor checo como um "outsider no centro da arte moderna". "Sou dado ao exagero, mas podem ter confiança em mim", dizia o autor de O Castelo. Modesto Carone confia a valer: para ele, a experiência artística de Franz Kafka continua brutal.

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